Mónica Mindelis, Caos Calmo

“O ser que sobe vê apagarem-se os contornos do abismo”

A voz é suave, o tom pausado e tropical. O corpo franzino. O olhar, ligeiramente oriental. Expressivo, tal como o discurso. Sorriso fácil, audível e rasgado. Silênciosa e recolhida no acto de pintar. Traço expressivo. 

Mas quem é esta pintora, relativamente (des)conhecida, que pinta a partir de um exercício interior, diário e sistemático, que se inspira em Gaston Bachelard e segue para a tela levando e traduzindo no gesto, ora rasgado, ora dócil, a expressão da sua vida e do respirar e do sentir mais profundo?  

Quem é ela, que passados tanto anos de trabalho árduo e solitário de atelier solta de pronto um sorriso aberto:  “... sabe, eu acho que a minha pintura causa estranhamento. São poucas as pessoas que olham e gostam de imediato, mas isso é um elogio para mim... a revelação e o encantamento é posterior, exige uma relação, exige tempo... se fosse o contrário perdia todo o valor... isto para mim valida a universalidade interior que é comum ao ser humano.”

Vamos lá atrás.

IMG_3717.jpg

2011
Estávamos em 2011. Ia abrir uma galeria, o que aliás fazia todo o sentido. Basta recordar que vivíamos umas das maiores crises financeiras e o dinheiro que outrora corria como um rio, evaporou, ou melhor, sumiu. Precisava de montar um projecto e encontrar artistas plásticos que pudessem ajudar-me a formar um grupo de propostas sólidas e entre elas deviam coexistir novos autores. Fui afoito face ao perigo, à derrocada geral e ao convite lançado por dois amigos. Avancei. Para aumentar o grau da aventura, tinha passado os últimos cinco anos longe da capital e do selecto meio das artes e do meio que anda no meio do meio das artes. Foi neste contexto de um imenso salto no deconhecido que conheci a jovem Mónica Mindelis. 

2010
Para que conste. Em 2010 a minha vida era outra, oscialava entre um sargo grelhado e umas viagens de jipe em terreno acidentado. Trabalhava na costa alentejana. Recebia e guiava turistas, geria uma pequena empresa de alojamento local e turismo aventura. Ao fim da tarde podia seguir para o mar, descer umas ondas e de seguida, ao som do vento da noite, parar sem aviso à porta de um amigo: “vens jantar?”. Abria-se uma garrafa de vinho. Lá fora os pássaros apitavam aqui e ali, no ar um ligeiro aroma a esteva, e por cima o céu de um negro profundo e luminoso, repleto de coisas cintilantes e estrelas desconhecidas. Era simples. Bebia-se em silêncio. Comia-se devagar, falava-se se havia que falar, se não, era um silêncio acompanhado. Acabou-se quandos os tais dois bons amigos resolveram telefonar-me: “vens abrir uma galeria de arte em Lisboa”. Fui!  

2011, o encontro
Mudei-me e tudo mudou: o cenário e o ritmo, o contexto e as personagens. Vinha oxigenado. O campo dá-nos um ar diferente, entrega um horizonte que flui de manhã ao anoitecer. É escasso, pouco erudito, aparentemente solitário, mas intensamente revelador da essência maternal da vida.  

 Lisboa buzinava numa pressa que tinha guardada na memória. O encontro com os artistas, a criação de um calendário de projectos, as obras na galeria, a comunicação ao mundo, o catálogo, a base de dados, o convite... era preciso despoletar tudo e tudo já. Mas no primeiro plano interessavam-me os autores.

Não me lembro como lá cheguei, mas fui parar a umas catacumbas na Sociedade Nacional de Belas Artes. A Mónica Mindelis esperava-me e eu às escuras. A sala era enorme e vazia. Paredes brancas e nisto vejo-a a desenrolar uns rolos enormes de tela e papel, pinturas que a ultrapassavam em altura. Assisti áquele bailado na expectativa e com o receio de dizer: não. 

Surgiram uns traços expressionistas, vigorosos, que formavam uma teia intensa e caótica. Transmitiam uma energia própria. Impressionou-me, porque no caos pode subsistir a luz e uma certa escala de harmonia. Apresentou-me uns cinco ou seis trabalhos, todos eles com as notas exclusivas do preto e do branco. Falavam entre si. Aquilo lembrou-me “old school” e em bom. Disse sim.

 
 

Caos Calmo
Foi o começo. Desenvolvemos vários projectos em conjunto. A pintura, como qualquer processo artístico, necessita de um bem escasso, o tempo, e a Mónica Mindelis é generosa e paciente com ele. Percebi um pouco mais tarde que pintar não é apenas um acto de desejo ou uma daquelas vontades que nos dão, tão pouco um processo religioso ou experimentalista. É antes uma missiva espiritual de mergulho interior, um exercício permanente, onde a pintura tem o papel principal:

“O meu trabalho será sempre uma procura até ao último suspiro. Tem um lado muito intuitivo, sim, e isso não se explica, é a parte mais livre. Quando me deixo ser, quando estou ali por inteiro... é um momento intenso... eu não consigo dissociar o trabalho da minha vida, do momento que vivo. Quando estava grávida era impossível não ver a ali a maternidade... até os títulos das obras gritavam: “todo o ninho está condenado ao abandono”... os sentimentos fortes estão sempre lá... mas acho que isso é óbvio para todos... embora haja muitos autores que claramente dissociam o interior do seu trabalho. Não é o o meu caso.”

 Pois não!

2-cópia.jpg
4.jpg
2-cópia 2.jpg
2-cópia 3.jpg

Depois da escrita rasgada, do preto e do branco, chegou a cor, “... e uma diferença fundamental: a intencionalidade. Na primeira fase da minha pintura eu partia do gesto e avançava por ali fora, sem pensar. O gesto vinha e só depois a composição. Agora a minha pintura é mais intencional, perdi o medo das formas”.

E passados oitos anos deste caos calmo é possível formular e delimitar os vários capítulos, “o meu trabalho é uma continuidade, são etapas da vida e da sua dualidade, dos cuidados e dos sonhos a que estamos sujeitos.”

5.jpg

“Se no céu as imagens são pobres, os movimentos são livres” 


Gosta dos contrastes mas interessa-se e foca-se na procura do equlíbrio. Reina sempre a dualidade entre a explosão e a ordem: traços finos e suaves, manchas densas e com volume... surge a colagem, fina e regular, e ao lado um traço rude e vincado do bastão de óleo. “... eu procuro essa massa, como ao mesmo tempo preciso da suavidade do lápis... gosto de trabalhar o imperfeito, sentir na pele a beleza do imperfeito e fazer transparecer essas camadas de vida...”

E não nos entrega nada de mão beijada, teremos sempre de atravessar uma tempestade, sobreviver ao tumulto visceral da composição, aos contrastes, à intensidade narrativa e às explosões de cor, aos cortes e recortes vincados… mas se persistirmos e nos retivermos para além do imediato, se aprendermos a observar com atenção as nuances de uma caligrafia autónoma, revela-se um mundo desconhecido, uma linguagem vibrante e original.

A delicadeza explosiva ou a explosão delicada podem coexistir, ponto. Como escreveu Pedro Chorão: “O segredo é esta pintura levar o espectador a ficar sem saber bem o que dizer… É isto que é muito importante a pintura ter: o inexplicável, o mistério eterno, que será o que lhe irá dar a eterna vida”.

1.jpg

Variáveis menos visíveis que eu aprecio:

Escreve enquanto pinta. Toma regularmente notas num caderno onde reúne textos e citações que se convertem em pistas e posteriormente ganham formas. Pensa sobre o acto de pintar. Raro.

Gosta de sonhar e consegue voar. É muito saudável esta capacidade de nos libertarmos dos pesadelos e ascender aos céus. Fala muito do filósofo Gaston Bachelard, uma companhia imprescindível: “… ele escreveu sobre a poética do sonho. A descrição de um sonho, quando as pessoas estão a voar... e lembro-me de ter sentido este sentimento maravilhoso de liberdade. Nenhum inimigo era capaz de me alcançar. Era a salvação...”.

Pratica a interioridade. O que nos oferece vai além do empirismo, dos sentidos e da razão. São formas não tangíveis que apontam a uma evocação de interioridade, a uma experiência sensível. Vive o que pinta, pinta o que vive.

Aprecia o perfeito inacabado: “o meu trabalho nunca vai estar pronto... é verde maduro... e isso conforta-me, porque significa que nunca vai ter fim...”

6.jpg

Nota à parte
Enquanto escrevia este texto questionei-me por diversas vezes: porque tendo a alongar-me em considerações autobiográficas e afins? Uma explicação possível: escrever sobre artes plásticas pode ser tão complexo e fastidioso quanto ler. E todos nós já sentimos o martírio de passar os olhos por um texto que nos faz sentir os seres mais atrasados à face da Terra. Aquilo não apetece. E aquilo serve para explicar “a coisa” que está lá dentro, exposta, que não é para explicar, dizem, mas pelo sim pelo não, aquilo dá algum corpo e formalidade, no mínimo cria a dúvida e a dúvida penetra nas nossas certezas e torna-as incertas, inseguras face “à coisa” e deixa-nos ali pendurados e assim, sem se explicar, deixa-se explicado que algo filosoficamente inteligente está para lá de uma percepção primária, porventura a nossa. 

Não apetece. Não me apetece. E por isso, depois de ter tentado sem sucesso assimilar e fazer copy/paste de discursos e frases eruditas e notavelmente inteligentes, para tentar criar uma linha própria, rapidamente percebi que nem com mais estudos e teses de doutoramente chegaria lá, e também por isso o caminho apresentou-se-me simples, optei por back to the basics, no fundo por apresentar algumas pessoas que têm algo para nos revelar e surpreender sem termos de mergulhar num qualquer abismo filosófico ou conceptual. De forma muito simples, retirar a prosa daquela área do quadrado fechado onde por norma se expressa a vertente erudita, culta e por vezes altiva do meio, abraçando aqui uma forma de paganismo e sujeitando-me, como é evidente, a algum tipo de inquisição. 

IMG_7002.JPG

Pedro Batista, sobre a luz da pintura

 
PB2-cópia 2.jpg
 

“… nas sociedades “supertecnológicas” quem consegue passar três ou quatro horas sozinho, sem estar ligado à Internet, está a introduzir ou a manter séculos passados no século XXI… Hoje, ler e escrever são quase processos de resistência, revolucionários. Não estar ligado à Internet, estar sozinho, implica ultrapassar uma quantidade de obstáculos. Não sendo a escrita um processo espiritual é um processo de abdicação. O contacto com a Internet é o mais fácil.”

Gonçalo M. Tavares, in entrevista ao semanário Expresso

Prelúdio. 
Sucede-me com cada vez maior frequência conhecer pessoas que manifestam abertamente o seu desejo:“vou assumir a minha vocação de artista”. Acho óptimo, até porque as máquinas vão acabar por retirar-nos dos trabalhos. Alguns querem ser pintores. Pegar em tintas e ficar ali, dia e noite à volta de uma ciência inexata. Esta tendência deveria ser diagnosticada precocemente. E no caso de se confirmar deverá ser ministrada uma prescrição bem definida e exemplar. Aceitar este destino é um passo que exige perspectiva e clarividência. Recordo-me que quando eu era miúdo os meus pais, de forma contínua e insistente, ensinaram-me a não aceitar nada sem saber o que me estavam a oferecer. No mínimo desconfiar, estar atento ao detalhe, avaliar com ponderação e franzir a sobrancelha antes de estender a mão. Ficou-me para a vida. Sou desconfiado. Os pais são um carimbo de memórias. Marcam-nos. E usam uma tinta que depois não sai. Esfrega-se, esfrega-se, esfrega-se, mas a impressão fica ali, debaixo da pele. É desta tinta que falo. Há um gene muito singular que determina a forma do desejo. É preciso conhecê-lo. A pintura é algo para se levar muito a sério.

Coragem. 
Esta manhã, ali pelas 08h00 à porta do ginásio, encontrei um amigo que decidiu relatar-me o sacrifício que acabara de viver ao sair da cama: “mas explica-me lá, porque é que tudo custa tanto, não podia a vida ser mais fácil? Temos mesmo de passar por um sacrifício para atingir algo válido…”. Rimos juntos, demos uma pancada no ombro um do outro, virámos as costas e fomos fazer flexões no meio de uma pequena multidão. É assim. O enigma que vivemos, este de estar vivo e viver estados de alma, não tem solução aparente. Os criadores sabem-no como ninguém. E ninguém neste planeta vive assim tão intensamente consigo próprio, dia a dia, pesquisando nas profundezas mais sombrias, vasculhando, vencendo com coragem o medo do escuro e a insegurança da mão, quando esta se recusa a obedecer e não corresponde uma ordem dada, quando o cérebro diz sim, segue o caminho, e os passos ficam tão aquém do que se imaginou.

Contexto.
O Pedro Batista é um pintor que acompanho desde 2012. Temos afinidades e amizades comuns mas nunca nos misturamos. Estou uma geração acima. O meu sangue corre mais espesso e lento. Isso permitiu-me sempre um olhar independente e crítico. Ser um pintor na sua geração é um desafio maior de sobrevivência, tanto de espírito como financeiro. Mas olhando de fora o mood geral é fun&fresh. A geração Erasmus e as companhias áreas low cost criaram as pontes deste novo melting pot, onde a máxima “vive e deixa viver” é acompanhada por uma avalanche de hubs criativos que vieram destituir dogmas e revolucionaram a própria industria criativa. É uma geração aberta e imparável, uma teia de redes e trocas que criam energia e novos valores. O Pedro Batista sabe surfar nesta onda que se desmultiplica em experiências de vida, entre o cool boy montado no seu skate e o artista que precisa de viver agarrado à sua raiz. Ao longo destes anos visitei e conheci uns quatro ou cinco ateliers onde se instalou e desinstalou. Lugares de passagem, lugares de experiência, lugares comuns aos da sua geração, mas ponto fulcral, onde exerceu o seu manifesto de pintor. 

Arena.
Esta evidente dualidade entre a ligeireza dos dias e a profundidade dos espíritos, tão vincada e difícil de conjugar, gera a matéria que despertou o meu interesse na obra do Pedro Batista. Enquanto pintor faz parte de uma geração que vive em contra ciclo. Todos eles precisam de silêncio, interioridade, tempo, precisam do toque, da verdade e dos olhares que sabem pousar com delicadeza... precisam de tudo isto e muito daquilo de que todos fugimos porque nos dá medo. E isto passa-se dentro. Lá fora, onde se vive, o filme muda radicalmente de cenário. Há um enorme campo de batalha disfarçado por confettis e lantejoulas. Um grau abaixo o terreno está repleto de oportunidades e peões armados. Há facções, intrigas, géneros e lutas que não se podem negar. A competição é feroz. O idealismo também. Um pintor sabe que há fronteiras que só se conseguem ultrapassar com a persistência e o tempo. Algumas só com ajudas. Mas a pintura continua a ser pintura. Perceber e conviver nesta dualidade, deixar-se ficar sem ser vencido, é o jogo da sua vida. 

Sobre a pintura de Pedro Batista.
Gosto imenso de olhar e gostar. Por vezes faz-me bem não ter de pensar ou apreender mensagens subliminares que me atiram para um conceito longínquo. Gosto de fruir. Gosto mesmo desta ideia perdida da fruição. Sabe-me bem ficar ali com aqueles traços e manchas que formam uma composição interessante. Sentir, mais do que perceber. Receber, mais do que pedir. Gosto de narrativas pintadas que nos deixam atentos. Aprecio enigmas que nos ligam a estórias não reveladas. E gosto da surpresa, de entrar pela criatividade alheia e de sentir o pulso da matéria. 
Faço vivas à old school, onde paradoxalmente inscreveria a pintura do Pedro Batista. Não foge da tela, não a nega. Ela é matéria e fórmula sofisticada de exprimir em frames o seu mundo, o seu statment. Não tem um percurso clássico mas é um pintor de atelier. Pinta a partir de uma narrativa interior, num exercício que se situa entre o desejo e uma necessidade. Não há ali espaço para a erudição ou aturadas proclamações filosóficas. Tão pouco a defesa de causas, demandas ou circunstâncias políticas e sociais. O conceito é simples e curto: pintar. A arena é a sua vida e o atelier, onde faz o que gosta. Foca-se sobretudo nas pessoas, num registo que transporta quase sempre uma carga psicológica ou teatral. Explora habitats diversos, recorrendo à cor, muitas vezes intensa e impactante. A “sua cena” é o momento que lhe dita e ele escreve. A pintura é um playground repleto de experiências e visões do quotidiano: personagens e estórias que recolhe das memórias ou naves espaciais que vagueiam na imaginação interplanetária. Falamos de matéria infinita: imagens cinematográficas, jogos psicológicos, sonhos, teias de memórias partilhadas, dinossauros ou objectos de culto. Estamos longe de uma visão clássica ou de uma tentativa de aproximação ao realismo. As vezes que o visitei e o vi a pintar, fiquei com a sensação de agarrar a pintura como um ofício, numa visão clássica do acto de pintar. Curiosamente esta formulação, aparentemente passadista, vem sendo reinventada numa outra escala, neste outro tempo, com toda uma nova fonte de desafios e mundos.

Pedro Batista.jpg

Joana do país das maravilhas

“Quando sou boa, sou boa, quando sou má sou ainda melhor.”

Captura de ecrã 2019-02-13, às 12.17.44.jpg

Sabe quem proferiu a famosa frase? Não foi a Joana. Não interessa para o caso. Soa bem, vem das entranhas e é um statment poderoso. Não foi a Joana mas poderia ter sido. Joana é nome de guerra. Joana são todos os artistas. Escolhi Joana porque há uma que conseguiu ser mais. Mais tudo. Mais poderosa, mais visível, mais falada, mais corporativa, mais ousada, mais activa e robusta. Simplesmente mais, mais do que todas as outras Joanas e Alices.

Joana apresentou trabalho. Fez-se notar. Lançou-se às feras nos anos 90, mas foi no raiar do novo milénio que o seu nome passou ser figura central do mercado das artes e não só. Criou ruído onde pairava um silêncio entupido. O grande circo internacional acolheu-a e de seguida aplaudiu-a. O povo lusitano rendeu-se. Os seus pares nem por isso. Continuam a juntar-se em coro, vociferam alto sobre o carácter lúdico/juvenil da obra e destilam inveja nos seus argumentos curatoriais. Não lhe perdoam, mas não lhe importa. Joana segue em frente com a sua caravana. Abre e conquista fronteiras. Criou o seu show e está perto dos Deuses do nosso tempo, a quem obedece.

O que me interessa de sobremaneira na Joana é o facto de ela saber melhor do que as outras Joanas o que custa ser artista. E esta percepção constitui em grande parte a chave mestra do seu caminho, visibilidade e sucesso. Ao ler algumas das suas entrevistas passei a conhecer melhor Joana. Fiquei seduzido. Revela inteligência, soft skills inegáveis e uma clarividência que denota o aprumo com que se moldou à realidade. O pragmatismo é uma ferramentas de trabalho.

Nos anos 90 a jovem Joana já sabia, por norma um artista aguenta-se 10 anos e 10 anos é um excelente padrão para medir o pulso. Uma grande maioria soçobra, cai e desaparece sem deixar rasto. Vão ver quantos Prémios EDP Novos Artistas subsistem e dos que subsistem, quantos desataram o cordão umbilical e seguiram? Quantos se desarmaram das mais profundas convicções e converteram-se em funcionários públicos? Ao fim de 10 anos Darwin ressuscita e descarrega no vazio geração atrás de geração. Sobram os mais fortes, os mais espertos, os mais adaptados ao meio, que por sinal é carnívoro e insaciável. E lá de quando em vez, ao dom da sobrevivência acresce o dom do talento.

Acresce também Portugal. Joana grande, pensou sobre o que se via por aqui em ponto pequeno. Os modernistas do século XX, fechados sobre o seu tempo, e as novas fronteiras a rasgarem-se, as telas a morrerem nos museus, as galerias numa encruzilhada, entre Pomar e Sarmento, os conceptualismos e os new media a extravasar, uma sociedade global e consumista numa mudança sem precedentes. Joana emancipou-se, saiu da redoma a que o meio tende a viver. Fez orelhas moucas, deixou-se de “puritanismos” e foi por ali fora. A concorrência é feroz. Joana artista virou Joana empresa, mas sempre Joana.

E sejamos claros, quantos artistas denotam o mesmo sorriso lustroso? Quantos artistas surgem ao lado de presidentes e quantos expressam publicamente o seu agradecimento ao país e ao mundo? Quantos artistas possuem peças em grandes colecções internacionais como a Pinault e a Arnault? Joana do povo. Joana a democrática. Joana a conquistadora. O seu discurso é um acto de rebelião face ao mainstream: a criação já não é um monopólio das artes plásticas. Acabou. Há arquitectos, designers, realizadores, joalheiros, costureiras… há matéria infinita sobre as mesas dos criadores.

Joana estudou. Observou o Homem contemporâneo e concluiu: vêem televisão e estão sujeitos à publicidade. Compram. São facilmente seduzidos. Os primeiros 30 segundos são vitais. Devoram tudo com base no first glimpse. É isto. Não fui eu que inventei. O nosso mundo é assim. Eu sou artista plástica, capto e traduzo um olhar sobre a realidade contemporânea. Querem lantejoulas? Aqui estão! Emocionem-se primeiro e pensem depois.

Joana é um paradoxo, ou seja, o oposto do que alguém pensa ser a verdade ou o contrário a uma opinião admitida como válida. Ou se gosta ou se odeia. Em cada gesto, peça e acção, há porventura tanto de verdade como de falso. Há tanto de singular como de banal. Há tanto de passado quanto de futuro. Mas há sempre muito e muito do tamanho do mundo de Joana. E de longe chega-nos o seu murmúrio: estamos no século XXI, meus caros, deixem Duchamp descansar em paz. Enterrem Beuys.

Para se alcançar este conjunto de feitos é preciso trabalhar arduamente. Suor, lágrimas e uma boa dose de clarividência (não é preciso sangue). Joana sabe o que custa ser artista. Há um preço, mas já não viaja sozinha. A seu lado seguem os omnipresentes colecionadores, os verdadeiros donos disto tudo, e no banco detrás os curadores, que contextualizam, fundamentam e apontam a compra. Viaja com Dior ou Gucci, com quem já desenvolveu projectos, viaja sempre com a presença de Darwin, com quem mede forças e sai sempre a ganhar.

Existe ainda a Joana feminina, Joana mulher, que se faz acompanhar da memória colectiva das avós, dos seus bordados e de Bordalo, de conceitos da portugalidade que apresenta transvestidos. Recorre à grande escala, gerando ondas de espanto. Recorre a objectos, materiais e ofícios de ontem, o que nos fixa a um imaginário sedutor e nos reverte para a nossa história e costumes. Um passado presente que exporta e vende, exaltando o patriotismo e a nação.

O seu cabinet de curiosités continua a ganhar forma e volume. É fácil criticar Joana. É difícil criticar Joana. Quando é boa, é boa, quando é má é ainda melhor.

1982, Inês Norton

“… A linguagem tem valor, mas o que tem valor na linguagem são as ideias, e as ideias têm algo que vem depois. E isso que vem depois das ideias não pode ser transmitido por palavras…”

1982… a Argentina invadia umas ilhas sobre domínio inglês no Atlântico sul, dando origem à guerra das Malvinas. Spielberg libertava ET e comprometia o planeta com o universo. Michael Jackson espalhava o terror com Thriller, o álbum mais vendido da história. García Márques viajava até à Suécia, celebrando amor em tempos de cólera. Elis Regina fechava os olhos e partia em direcção ao eterno.

1982… o tempo que nos dá corpo tem uma escala tão própria que nos faz parecer eternos e mortais na mesma fracção. A dualidade constitui-nos. Como é possível desejarmos abraçar o mundo e num outro momento morrer e fugir para dentro dele? Quanta gente habita em nós, sendo este nós um só. Como apagar a personagem solitária que vagueia no escuro da noite e amarrar para sempre a luz que se abate sobre o olhar de um amor infinito?

1982… nasce Inês Norton.

Displaced Forest - 90x120 cm - 2017.jpg

Viajemos pois de 1982 até 2012, o ano em que a Inês atravessou a porta da minha então recém baptizada galeria. Demasiado jovem, demasiado bonita… demasiado frágil, conclui, muito antes de olhar para o seu trabalho. Um preconceito grosseiro tomou-me de assalto. Nem dei conta. Tinha o não no gatilho e estava pronto a disparar. Contive-me. Faltava abrir o portfólio e desatar o nó perante as evidências. Só depois poderia com um delicado sorriso pedir escusa, improvisando um caminho alternativo. Enganei-me.

Abrimos e folheamos imagens dos trabalhos. Escutei uma voz firme. Havia um discurso. Uma história com argumento e eu, que estou cansado de tantas histórias e conceitos quando o tema é arte, dei por mim a deter-me nos seus objectos feitos de muitas coisas e a acompanhar uma linguagem que, tendo sempre uma base metafórica, ligou-me de imediato à vida, ao ar que respiro e ao mundo dos homens. Alto, ela tem os pés na terra. Foi o primeiro capítulo.

Sobre o tema dos conceitos e as artes plásticas, tenho a acrescentar o seguinte: encontro-me e confronto-me frequentemente com autores que têm supostamente um discurso muito estruturado, todo um pensamento descrito por palavras que revelam os seus olhares intrincados, as interrogações contemplativas, angústias, revoltas, uma visão do mundo, statment ou… whatever… o que me parece como ponto de partida um caminho muito plausível e aceitável. Acontece porém que esse caminho é tortuoso. Expressar uma ideia original é um dos mais duros exercícios a que nos podemos submeter. Não está de facto ao alcance de todos. A vontade sim, a prática é outra coisa. Em muitos casos não resulta apenas do nosso desejo mas de um contexto histórico que está para lá do quarteirão do nosso ego. Mas mais difícil se torna quando sentimos o impulso de passar o conceito à praxis. Como eu costumo dizer, vestir uns calções, uma camisola de marca desportiva e calçar umas sapatilhas, contando lá fora aos meus amigos que agora pratico corrida, não faz de mim um maratonista, e sobretudo não faz de mim um maratonista competente. Ponto parágrafo.

Daquele encontro, daquela jovem artista… engoli em seco o primeiro olhar. Aprendemos muito a observar em silêncio. Foi o início de uma viagem e o seu azimute já estava marcado: “crio, acreditando que a arte é o caminho menos obstruido para a experienciação…". Deste ponto de partida a Inês Norton demarcou muito bem as linhas da sua procura. Mais, mantém-se fiel ao seu território. E nele vive e habita a dualidade. A dualidade do espírito e a dualidade da acção. A humanidade que co-habita na natureza: criando, construindo, manipulando. A natureza que co-habita e acolhe a humanidade: cedendo, gerando, abrigando.

O tempo mudou. A geração de artistas onde se insere a Inês Norton procura e escava num terreno tão fértil quanto consumido. É neste novo mundo, pejado de movimentos, objectos e relações, que a artista cria e nos interroga. O que sobra? O que nos resta a nós que penetramos natureza adentro, devorando cada fruto, cada raiz, cada átomo da vida? E que grandeza é esta, tão insana e deslumbrante, que nos abre ao universo e nos deixa a milímetros do abismo? O Deus criador. O Deus destruidor. All natural.

Acolhe a dualidade. Abraça ferro rude e áspero, transformando-o num objecto mensagem. Não se escuda no belo e no agrado. A estética é ponto de chegada. Constrói revelando sinais vivos de combate. No primeiro patamar está sempre uma interrogação. Os objectos nascem na margem do confronto com a realidade e surgem como metáfora aguda ao sistema, ao padrão instituído e a uma certa ideia mundo, a uma certa relação com o mundo, ao qual ela acrescenta nova consideração. O consumismo, a destruição, a apropriação… toda e qualquer intervenção humana despudorada, todo e qualquer frame que invoque o diálogo entre o natural e o artificial, entre a ordem viva e a criação humana, relembrando-nos fragilidades, perigos e ambiguidades, mas também relações de construção, são matérias filtradas num olhar atento e numa prática que entretanto formou um corpo de trabalho que se tornou robusto. O lado subversivo chega muita vezes com um toque de humor. O desarranjo das convenções e a ironia sobre a ordem estabelecida, são guiões de um alinhamento mental interpelador.

2019… A viagem continua e a Inês é uma maratonista competente. O presente, esse breve momento eterno, permite-nos prosseguir, obriga-nos a prosseguir. Não existe a perfeição mas um caminho até ela. A vida é um mero sopro e uma estrela demora biliões de anos até morrer. Não podemos parar, não podemos descuidar de pensar e viver a humanidade.

imagem 3.jpg
Captura de ecrã 2019-01-16, às 14.42.11.jpg
 

"[...] a obra é irredutível a uma simples coisa explicável pela ligação matéria-forma, porque ela tem esta capacidade de exibir uma verdade. Mas a verdade que a obra mostra não é uma verdade abstrata, um horizonte geral. É uma verdade situada no tempo e no espaço, que é, a cada instante, a de um mundo e uma terra determinados "

( Michel Haar na interpretação das reflexões de Heidegger em - A origem da obra de arte )