Fotografia: Mjustino

Quem é?

O corpo está esparramado numa poça de sangue coalhado. Pelos meus cálculos o sossego e a monotonia terminaram com estrondo há 25 minutos atrás. O bairro apanhou um susto de morte e a cena montada é lamentável. Há cacos de peças de automóvel por toda a parte, carros virados do avesso, e instalou-se um cheiro pesado de borracha queimada misturada com gasolina. Estão dezenas de pessoas em movimento, algumas com as mãos na cabeça, outras de boca aberta sem conseguir proferir um som, telemóveis para a frente e para trás, gritos de socorro, evocações. Ai meu Deus. Há feridos, sangue espalhado, pessoas a confortar, e uma velhinha estacionada ao meu lado a bater-me no braço e a apontar:

- Quem é?
Mas que pergunta. Não interessa! Está morto!
- Aquele senhor sofreu um acidente muito grave.

Ficamos em silêncio, lado a lado. O socorro ainda está para chegar ao corpo deitado e a alma já partiu sem licença. Depois do susto o desespero, agora a resignação. Todos velamos o cadáver, todos menos aquela senhora magra, pequena, dobrada sobre si, com o rosto virado para a poça de sangue:

- Ninguém o acode? Ele está vivo?
- Não, minha senhora, está morto!
- Mas como é que sabe? quem é ele?
- Não sabemos muito, mas ele não respira e tem a cabeça aberta ao meio, minha senhora, parece que vinha a caminhar sozinho e estão a dizer que não traz telemóvel nem carteira. Se calhar tinha um compromisso, marcou uma hora com a amante e o destino traiu-o.
- Mas que disparate rapaz, fala como um coveiro que de tanto prestar assistência à morte perdeu o encanto em vida. Devia ter ficado calado. Eu sinto o seu perfume, cheiro o seu hálito. Não chama a isso vida? 

O silêncio regressou mais intenso. Sim, tem toda a razão, mas que disparate, pôr-me a brincar ao sarcasmo com uma senhora de idade em frente a um morto.

- Mas precisa de ajuda, quer que a leve a uma loja ou a casa? A polícia está a pedir para seguirmos em frente, acho que temos de abandonar o nosso posto. Infelizmente este capitulo terminou mal, o herói morreu. Está fechado o véu.
A senhora não se mexeu, nem os lábios. Os médicos andam de gatas à volta do morto. Tentam perceber como lhe vão pegar sem que o corpo se desfaça em peças. Não quero abandoná-la, pode estar desorientada, sofrer de Alzheimer, não ter tomado o comprimido da consciência.
- Já sei quem ele é. Caro senhor, vamos para casa, sim. A luz do sossego tardou um pouco mas chegou. Deixa-te deitado Joaquim, vai tranquilo e descansa agora como tu tanto querias, este senhor leva-me e cuida de mim, não te preocupes, levo o telefone e a tua carteira comigo, descansa em paz.