Tempo, Memória, Ausência

Trata-se de um caso difícil para mim, para a minha escrita. Não cabe em modelos. Tem um lado disruptivo. Já foi pintor. Mas já não é. É artista, mas na linha seguinte vem a pergunta: o que é isso de ser artista? Traz muita interrogação. E contra respostas. Não é fácil entrar, muito menos apresentar uma imagem escrita do Nuno Nunes-Ferreira.

Vou designá-lo de artista, mas provavelmente estou errado. Todos eles são mal amados, pensam. Diria pouco amados, na proporção do seu mundo interior. Muitos são apenas parte de um número. Não o sabem. Na verdade sabem, mas vivem bem assim, dentro de um circo que se esvazia, tão cheio de nada. Este não. Este artista é militante, convicto. Coleciona. Tem densidade. Trabalha o seu corpo de projetos. Arquiva. Tem orgulho próprio, qualidade óptima quando acompanhada de critério. Veste muita vezes de preto e nunca me lembrei de lhe perguntar o porquê. Corresponde. É afável na devida proporção da sua solidão. E o preto tem uma luz interior profunda que reflete, quando se detém o desejo de ver. É paradoxalmente claro. Genuinamente sintético, quanto denso.

Gosta do campo, onde vive. Percebe-se do que gosta. E do que não gosta. Usa o discurso direto com o devido critério. Revive e constrói estórias. Goza com as suas ideias. Ri. Sujeita a censura histórica ao pecado da partilha. Ri de novo. Abre cheiros perdidos a uma narrativa. E sempre o critério. E os afectos. Os pais e as memórias, o país que é o seu, a história que é a nossa, o tempo que é de todos. Compra imagens, forma sequências, ergue formas. Utiliza referências, as que lhe são caras. Constrói. Regista e encara a sua prática com uma precisão doentia, mas nem tanto, de fundo a forma é sã. Julgo sentir uma alma inquieta mas, uma vez mais, provavelmente estou errado. Há muita ironia latente, até no sorriso tímido.

Há silêncio profundo no olhar. Sente-se que contempla o mundo. Paira por cima dos seus projetos sem ficar dormente. Interroga-se sobre o tempo, a memória e a ausência. Crítica sem usar a voz. Usa a imagem e a palavra. E sempre o critério. É recolector das peças que precisa para sarar o puzzle que decidiu reconstruir, na mente. Vale tudo, até o pincel esquecido. Objetos, sim. Jornais. Autocolantes. Postais. Palavras, letras, sílabas... perdidos e achados de toda a condição. Ressuscita memórias, sem as revelar. Pega na ponta e desfaz a meada. Move montanhas. Não o imagino a desistir. A imagem final é distinta de tudo o mais. Joga fora da escala. Julgo que detesta o padrão. Julgo que adora o simples. Não posso julgar, provavelmente estarei errado. Sei que trabalha, muito. É artista, convicto. Assume-se.

Este é um caso difícil para a minha escrita, talvez pela densidade de um conteúdo que está para lá de uma descrição, que não se afirma necessariamente pela estética, ainda que latente, nem prima pela evidência, ainda que presente. Traça uma linha fora do horizonte próximo por onde circula, sempre à volta do humano.