Fotografia: Mjustino

Apanha Céus

Tenho as pupilas derretidas num Valium. Pensei que estava a voar, mas era num sonho. Na realidade, acabo de aterrar num terminal B, em Nova Iorque. Trago um saco às costas e a cabeça dormente sobre o pescoço. Nem sei de que terra sou. Vou em ziguezague por este corredor sem janelas até ao posto de comando avançado e estanco: “qual é o motivo da sua visita?” “Os meus filhos, não aprecio arranha céus!” “Tempo de estadia?” “Desmesuradamente curta!”. O polícia esboça um sorriso fingido, a cancela imaginária abre-se e recebo guia de marcha. Welcome to America! Sinto-me um atleta paraolímpico numa prova de barreiras. Não tenho ninguém à espera. Se morrer, morri. Por ora não posso. O cenário mudou, faz frio. Tenho um pingo a deslizar e os olhos ao vento. Não os vejo há 73 dias, a última vez que nos abraçámos estavam aborrecidos. Perceberam os limites que a geografia impõe à condição humana. O pai vive na outra ponta da piscina e não tem um submarino. Cada vez que volto e logo volto, vou ao fundo. Eles também, mas não retaliam, deixam apenas cair as pálpebras sobre os olhos: “adeus pai!”. Não adoptaram nenhum número dramático descrito no dicionário dos adultos. Eu sigo o seu exemplo. Tento. O autocarro cinza prateado entretanto chegou, o motorista é negro escuro e transporta na voz o corpo de Harlem: “Manhattan guys, Grand Central Terminal, guys, Manhattan”. Eu vim num avião, a eles trouxe-os a vida num acaso! Eu regresso, eles ficam. Não se devia permitir que a sorte e o acaso não caminhassem juntas. Ao longe o recorte dos arranha céus, em baixo a multidão e as suas almas. De tanto esperar, o longe aproximou-me daquelas duas vidas, que não sendo minhas a mim me pertencem. Falta pouco, sinto no sangue que corre. Recolho os olhos em modo sonho e de seguida sugo os seus cheiros até ficar com a boca cheia do bafo quente do riso e do nariz encavalitado sobre os meus lábios. Eles riem desesperados, eu despejo-lhes a alma por cima. A saudade tanto nos pode erguer como matar. Tenho medo que o encanto do meu perfume perca os seus poderes e desapareça. Seria um desastre. O autocarro prateado do motorista negro escuro acaba de aterrar na 42nd street. Agora são mais 15 minutos a caminhar até ao covil. A vida é um destino que tarda e a mim move-me a força de um aperto no coração. Nova Iorque é um apeadeiro para um astronauta. Não me deixo guiar nem ficar refém da sua escala, sobrevoo com precisão e um sorriso curioso. Cheguei são e salvo à base 163. O vento pôs-se de feição. No final de um longo corredor alcatifado a entrada da grandiosa estação orbital. Sinto um palpitar nas têmporas. A notícia da chegada despertou a euforia a bordo da estação de comando. Pai, pai. Lá dentro o peso da gravidade sucumbe. A pequena nave colorida e os dois pequenos astronautas estavam à minha espera, querem voar. Pai, pai. À minha entrada carregam no botão e saímos para um espaço que é só nosso. Anda pai, vamos brincar ao apanha céus.