A Dúvida da Flor

Fotografia: Mjustino

O meu nome é Flor. Vivo numa daquelas aldeias descritas nos livros antigos. Somos poucos, temos casas em pedra, quintal, horta, animais para comer e vacas de leite. No Verão cheira a um verde intenso, regado com a água da montanha, e no inverno a fumeiro húmido, abafado pela aguardente. A minha mãe chamava-se Florbela. A minha avó Hortense. O meu pai era o Nogueira. Morreram todos. Foram morrendo. Não tenho irmãos. Depois de me conhecerem desistiram. Fizeram bem. Ia matando a minha mãe com os pés. Nasci com o corpo de um animal selvagem e uma cara em forma de sorriso. Aos sete meses caminhava, aos três anos ordenhava, aos quatro soletrava o livro dos contos. Os meus pais eram humildes e ignorantes, mas espertos. É silvestre, ela. Sim, sou silvestre. Tanto que a cabra não me comeu, a vaca não me pisou e a foice não me chegou à pele. Logo no berço, quando a minha energia incontrolável desbordou, chamaram a Rosa, a ama da aldeia e mulher de juízo, que conhecendo o meu colo tomou-me nos seus braços e sossegou-nos: esta flor viçosa vai beber ao rio. E levou-me naquela torrente de frescura desperta e bravia, tão viva e incontrolável quanto eu, quanto tudo o que eu queria abraçar, sentir e levar dentro de mim, sem jamais entender o medo, sem jamais me perder.

O meu nome é Flor Nogueira, quando cheguei ao Hudson a cidade de Nova York acolheu o meu desejo supremo: descobrir porque existem as flores. Revelar o esconderijo do supremo alquimista, as suas poções, como conseguirá criar o indizível, conduzir-nos à margem do sublime e provocar-nos um arrepio que sabe a infinito. Vivi os últimos 40 anos ao seu lado, fiz-me aluna e amante, fui espia e companheira. Usei a força do rio, a agilidade do rio, a vida do rio que me levou da aldeia, fiz de tudo para lhe tocar e sentir a pele, um frémito, que me deixasse antever a origem da flor, foi ela que me trouxe até este palanque em Estocolmo, ao lado de um outro rio, para receber um Nobel. Congratulo a coragem da academia por atribuir um prémio a uma pessoa que neste momento, frente a uma ilustre plateia, sente o tal arrepio mas não sabe defini-lo, nem justificar a sua nascença; e a um projeto, cujo o mérito não é revelar uma verdade provada, mas reforçar o mérito da dúvida. 

Mas porque existem as flores? Perguntamos. Não sabemos! A investigação da minha equipa, num raro e exclusivo encontro com o alquimista, conseguiu determinar cientificamente que a flor se encontra devidamente dissecada. Extraímos e catalogámos a origem e o fim, e no entanto, surpresa, deu-se o Big Bang, a explosão, detectamos que alguns elementos são mutantes, estruturas modulares simples que aparecem e desaparecem sem deixar molde ou rasto. Constituem a flor mas não fazem parte dela. Não conseguimos retê-las. O ponto é que sabemos agora que existem, levando a vida da flor para um campo de especulação e dúvida que está para lá da crença. Aterrámos a dúvida no campo da ciência e estamos perante um buraco de terra fértil. Existe um inexplicável visível que constitui a flor. Nesse corpo está a beleza, o milagre, a existência e a morte. Conseguimos vê-lo. Foi emocionante, único, mas, nesse momento, quando senti o doce cheiro da origem, fui expulsa pelo alquimista. Sofri a maior queda e revés da minha vida. Confesso que o meu rio, aquele que me levava para fora de todos os mapas, secou. Voltei. Regressei à aldeia de pedra, ao princípio do ciclo, como Flor viajante que se abriu e deixou encantar, sorvendo o Sol de todos os cosmos, e agora se recolhe para junto da Flor que a viu partir. Sosseguei. As flores existem para vivermos melhor com a dúvida.