Numa certa manhã, um certo senhor acordou e disse: "cada um sabe de si e Deus sabe de todos". Ninguém mais se esqueceu. A frase converteu-se em mandamento. Mas Deus magnânime, que andou sempre pela terra dos homens, foi dominado pela argúcia de alguns dos seus filhos. Deixou aparentemente de ser uno e passou a entidade regional. Surgiram uns irmãos vestidos de budistas, outros de hinduístas, muçulmanos e até cristãos. E depois surgiram ainda outros, como um televisor de 42 ou 54 polegadas. Todos eles sabem de todos. E cada um de nós dá-lhes a importância na sua devida medida. Não faço ideia do tamanho da minha televisão, mas nada tem que remeta para a grandiosidade: é pequena e velha. Funciona. Tenho apenas de me chegar à frente porque os meus olhos já viram demais e esta é a paga ingrata do tempo: o corpo primeiro oxida e depois começa a derreter como um gelado. Olho para o televisor como parte da família, mas distante, não lhe dou mais antena do que o espaço que ocupa na sala. Partilha o mesmo recanto dos Deuses, com uma pequena diferença entre eles: no caso do cristianismo tenho o maior interesse e deferência por quem promete levar-me no colo até ao céu e deixar-me em boas mãos, num lugar risonho e sossegado. Pode ser promessa vã, mas a oferta suscita aventura e conforto, trata-se de emigrar e adquirir uma vida nova, melhor do que esta que carrego. Seja lá como for, a possibilidade caminha no meu subconsciente. Não dou por isso. Mas na dúvida, não cuspir. Para já estou com os pés na terra e, entre todos, a televisão é o fruto que tem conquistado maiores audiências. Todos mordem. Eu que sou pessoa, não sou diferente. Conseguimos deixar a nossa vida e entrar na vida dos outros, e este é um trunfo de peso, porque já não temos de pedir para nos apaziguarem a alma, basta ligar o televisor. É muito reconfortante. Vemos sempre alguém em pior estado, e se não houver podemos olhar para o mundo como um todo. Há sempre novela. Os que estão melhor do que todos fazem-nos sonhar e o sonho comanda a vida. Está bem feito. Não precisamos do silêncio interior porque é lá fora que corre a vida. O drama que continuará a perseguir os humanos, até que a morte os separe, tem agora a mão pesada da justiça coletiva ou a alegria vibrante de uma nação. Somos família. Vivemos  juntos na terra, depois disto logo se vê.