Ao meu (ainda) jovem amigo e pintor Tiago Mourão (TM).
Não é pintor quem quer. É pintor quem nasce pintor. E não se trata de um jogo de palavras. É assim. A personalidade e a firmeza de carácter são os maiores construtores. O trabalho árduo no atelier, as horas solitárias, vazias de gente e mundo, a maior prova. Tenho uma convicção dogmática nesta matéria. Sente-se. Lê-se. Vê-se. Ser pintor é uma necessidade. E ninguém sobrevive à sua demanda se não estiver preparado para aprender a morrer. É mesmo assim, dramático e intenso. A tudo o resto chama-se, sem desprimor: artes decorativas. Aprendi isto a constatar. Era miúdo.
E quando era miúdo por vezes acompanhava o meu pai naqueles dias das avaliações finais nas Belas Artes. A última barreira do último ano de pintura. Havia sempre muita gente a assistir e muitos alunos para avaliar. Atrás de uma mesa, três professores: o júri. O meu pai era um deles. À frente da mesa os alunos agrupavam-se, entrincheirados no meio de pastas e telas e cavaletes. E tudo aquilo metia respeito. Temia por aqueles alunos e torcia por eles. Depois chegava o silêncio. O jovem artista expunha-se. O júri comentava. Abria-se o diálogo e trocavam-se argumentos.
E quando era miúdo e por vezes acompanhava o meu pai naqueles dias de júri, lembro-me das minhas perguntas e das suas respostas. Não se pode ensinar ninguém a ser um pintor. Podem-se acrescentar palavras. Pode-se suscitar uma ideia. Pode-se abrir e dialogar sobre os horizontes, sobre a estética e filosofia em geral, sobre a razão de um pensamento e a forma como ele nos move a agir. Podemos debater a forma, o suporte, a matéria, a escala. Podemos afirmar que as artes plásticas são a fronteira ausente da humanidade. É ali que o Homem procura dar expressão ao infinito. Podemos tudo isto. E tudo isto pode não bastar para se ser pintor.
TM é um pintor e um dos jovens pintores mais surpreendentes que tenho encontrado. Conheci-o a sair das Belas Artes. Combinámos um encontro. Tinha aberto a minha primeira galeria e procurava novos autores. Parco de palavras, apresentou-me uma série de desenhos, imagens dispersas, tentativas de algo. Era pouco até que conversámos sobre pintura. E nesse momento detectei-o. Sou incapaz de dissociar a mente da acção. Preciso de conhecer o pintor ao mesmo tempo que me reconheço na pintura. Não me basta o prodígio técnico. Não me chega o intelecto. Um jovem pintor é um início de uma linha de tempo com um desígnio.
“[…] não há nestas pinturas vislumbre de presença humana. A humanidade ou já partiu ou tardará a chegar. O único ser que por ali andou foi o pintor/arquitecto obsessivo e rigoroso. Não está representado, mas sentimo-lo. Ainda ali está. Como se nos olhasse enquanto observamos as suas paisagens […], escreveu André Tecedeiro ao lançar um olhar sobre as “Paisagens Improváveis” de TM.
Já passaram uns anos desde o nosso primeiro encontro em 2011. Ele prosseguiu. Aceitou o fardo num país pouco dado às artes. Mantém o desígnio porque dele não pode escapar. Tenta, porque o meio é duro e o país pobre. Tão pobre que não sabe distinguir o trigo do joio. Mas TM não tem escapatória. Rigoroso, austero, silencioso, não desarma e não cede ao seu olhar sobre o mundo e sobre a forma de viver a pintura. Consigo dizer que se trata de um caso raro na sua geração. Saber pintar e ler pintura, ser proprietário de um discurso autónomo e fora do sistema, ter a coragem e a ousadia de o manter… é no mínimo uma paisagem muito mas muito improvável. Parabéns meu caro jovem amigo e pintor.
“[…] Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora este: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza que se aliou.[…]”
Rainer Maria Rilke