O meu pai era um pintor e também dava aulas. Ele sempre me disse que sempre tinha querido ser pintor. Não gostava de dar aulas. Gostava era de pintar. E quando se gosta mesmo mas mesmo muito de uma coisa é difícil gostar de outra. Piora a coisa se algo nos limita a amar e a passar mais tempo com aquela coisa que gostamos mesmo muito. E ele só gostava de pintar. Por isso sempre ouvi e continuo a ouvir, passados 3 anos sobre a sua morte, pessoas a comentar: o Justino era um pintor. Este gosto exclusivo sobre a pintura trouxe os seus dissabores. O meu pai nasceu em 1943. Perdeu o pai, o pintor Artur Justino, e o único sustento da casa, ainda era uma criança. E já queria ser pintor. Eu tinha uns 4 anos quando ele recebeu uma bolsa da Gulbenkian e desapareceu durante 3 anos para Paris. Contaram-me recentemente que pintava até tarde num canto da lavandaria da residência da Gulbenkian. Não sabia. Mas muito cedo percebi que não tinha um pai, mas um pintor pai. Parece igual mas acreditem que não é. E ser pintor naquele tempo não era uma escolha, uma vocação, mas um desígnio. Eu percebi também muito cedo que o meu desígnio era antes de mais não ser pintor. O meu pai não gostava de dar aulas, mas pensar em viver da pintura era um traço de miséria e de dificuldades sem fim. A nossa família era a segunda família do meu pai, a primeira foi sempre a pintura. Mas a segunda família precisava de sobreviver e nisso o meu pai estava de acordo. Foi dar aulas. Foi amado e menos amado, pelo que fui ouvindo e captando, mas jamais ignorado. A convicção com que vivia e se afirmava era a mesma com que pintava, e o meu pai era um pintor. E isso ele podia e saberia transmitir. Naquele tempo, nos anos 70, adormecia muitas vezes no salão da Casa de Pascoaes com a cabeça no colo do meu pai. Ele tinha um lado solitário mas gostava de falar sobre pintura até tarde. Por vezes sobre o estado do país e as suas políticas. O meu pai tinha sempre um caderno e canetas consigo. Quando não estava a dormir estava a pintar, a desenhar, a esboçar. Ele era mesmo um pintor. Mas não vim com o propósito de editar um esquisso biográfico do meu pai. Mas já está. Parágrafo.

O que se passa é que vou-me lembrando do muito que fui aprendendo ao ver. E por vezes espanto-me com o que vejo. Tanto com a criação genuína e infinita, como com a desmesurada e “insustentável leveza do ser”, como com a mudança de paradigma e a velocidade a que navegamos. Tanto para bem, como para o mal. O que me leva ao famoso conceito taoísta do Yin e Yang. A dualidade. E ter nascido em 1970 deu-me este super poder de ser um filho da mais pura dualidade. Nasci antes da revolução, mas passei a fronteira já com um grau mínimo de consciência. Os meus pais eram casados mas sempre os vi como divorciados. As minhas avós viviam no Norte e nós no Sul, separados por uma estrada nacional tortuosa (já este Verão conduzi por 3 autoestradas vazias). Os meus primos tinham dinheiro, nós nem por isso. Conheci o Eládio Clímaco a preto e branco, mas já vi o Carlos Cruz a cores. Usei uma coisa que se chamava pager. Hoje passo parte do meu dia a olhar para um telemóvel e as suas dezenas de aplicações. Sou apaixonado por animais, mas contínuo a comer bifes de vaca, porco, galinha e de vez em quando peru. Uso da mesma diversidade no que toca a comer peixe. Tenho mesmo pena deles, mas como. Sou tendencialmente e genuinamente pró ecologista, mas ando de carro, mota e avião. Tomo por vezes um duche de 20 minutos. Também já fiz JetSki e gostei imenso. Uso plástico com fartura, mas tento colocar no sítio que diz: reciclagem. Pelo menos alguém deve ganhar com isso. Sou sensível à pobreza, já participei em inúmeras ações de campo, mas tenho imensos amigos com dinheiro e piscina. Óptimas pessoas. Vivi uns meses com missionários, acredito no espírito mas não acredito no ser humano. Adoro a minha mãe, mas provavelmente é a pessoa a quem causei mais dissabores. Não é a única. E no entanto sempre desejei e desejo não fazê-lo. Lisboa tinha 3 avenidas, 3 galerias, 3 restaurantes e o Galeto, 3 shopping centers, o cinema Império e o Monumental. Era “poucoxinha” e era cinzenta a maior parte do ano. Decadente o ano inteiro. Portugal era periférico. Ainda o é. Mas em 1984 (se não estou em erro) chorei quando perdemos a ida à final do Europeu para a cosmopolita França. E hoje, hoje somos campeões da Europa, sem saber ler nem escrever (mas menos analfabetos do que na década de 70). À esquerda o Saramago e o Guterres... À direita o Barroso e o Tolentino... Ao centro o Salvador Sobral. Gostos não se discutem. Parágrafo.