Estado de Pai

Fotografia: Mjustino

Tenho uma total incapacidade de lidar com a desgraça humana. Mas reajo bem ao desastre. Afeta-me mais a alma do que o corpo, é o que isto quer dizer. Excepto nas criancas. Não gosto de gente absurda, mas permito-me tolerar. No que toca a menoridade não me permito, vejo-me a desabar diante de um esgar de choro. Os meus filhos. São dois. Vivo longe. Em parte por opção. Em parte por cobardia. Reconheço. Mas não gosto.

Lisboa, 18 de Março 2020, aeroporto, 15h00. A vida assente em coordenadas termina ali. A realidade nem por isso. Enganei-me. O avião é no dia seguinte. A entrada está vedada. Há barreiras, pouca gente e uma mulher sem máscara a fazer de portão. Só se entra a conta gotas, mas ainda se entra. Eu não: "... o avião das 17h30 para Berlim é amanhã, o vôo de hoje sai às 16h30", disse. Primeiro movimento interno de pânico: falhei as coordenadas. Na rádio o Marcelo, a presidir. Nova ameaça: vão lançar o Estado na emergência. Quando? Sabe-se muito, pouco, de tudo. Talvez hoje, suspeita-se. A suspeita invade-nos antes do vírus. Tão cruelmente humana. Vou contra corrente. Eles entram, a conta gotas, eu estou a sair. Perdido. Ouço vozes que não reconheço. Está Sol e tenho os pés presos ao alcatrão. Não me mexo. Sinto o calafrio do medo. Os filhos em Berlim, eu sou supeito, o vírus, suspeito, também. Enganei-me. Não posso voar e amanhã o dia pode nascer fechado. Continuo parado num mar de alcatrão. À minha volta tudo mexe. O fluxo de pânico retorna. Aguardo um táxi. Vou regressar antes de partir. Talvez não. No radar a oportunidade. Ouço a voz que já ouvira: "...o vôo de hoje parte às 16h30". São 15h30. Afinal vou voar. Desfaço o pranto. Os pés mexem. Anulo o táxi. Enfrento todos os incógnitos que me rodeiam e a mulher que faz de portão. Disponho de 5 segundos. Vendo-lhe a ideia. Consigo passar.

Lá dentro reina a calma. Cá dentro a ansiedade de cumprir um destino. Começa o jogo. 60 minutos do tudo ou nada. Não há vida sem sorte. E hoje, dizem-nos que é uma sorte estar vivo. A pista está silenciosa, no seu luto de alcatrão negro, solitário. O relógio toma posse. No horizonte uma fila de 10 almas de distintas cores e formas. Uma multidão inimiga. Soldados desconhecidos. Por detrás do balcão um jovem louro, com ar germânico, retém o meu bilhete. O corpo inerte na fila, espera. A mente voa: "quem dominar os céus, dominará o mundo". Eu já estou fora, o meu corpo permanece, entre suores frios e uma ansiedade dormente. O jovem louro levanta o braço e grita: "alguém para Berlim?". Eu. Eu. Salto da fila, vitorioso. Enfrento-o com o meu melhor sorriso. Tenho a boca seca e o sangue a correr. Berlim, por favor. Espero. Disfarço o desespero com suaves esgares. Sorrio por detrás da máscara. Ele procura, fila a fila. Regressa com um sim, "temos um lugar". Por momentos o jovem louro é o irmão que nunca tive. O estado de transe domina-me. O meu mundo resume-se à ideia de entrar num avião. Carrego uma capa de super herói e um monte de medos. As pernas voltam a andar. O relógio ainda não parou. O corredor, as escadas rolantes, os seguranças. A última barreira de coral. Mais tubarões. E a urgência. Faltam 20 minutos. Culpo a existência dos filhos para aliviar o espírito.

Estou em estado de guerra e não de emergência. Capaz de pilotar, subir aos céus e seguir-lhes o cheiro até pousar em solo alemão. O cheiro de um filho entranha-se como uma escama num peixe. Sento-me na nave espacial e retiro a minha capa de super herói. Vou voar para eles.