Salvação

Verti com sofreguidão a última gota de álcool disponível no quarto do António Maria. O mais esbelto, adorado e ilustre mestre de cerimónias deste infernal mundo das artes, descansa agora no silêncio do seu quarto, encostado a uma lareira de fogo ardente. São quatro da manhã e no salão de festas, entre a turba de artistas, ninguém deu conta da tempestade que se abateu sobre a cidade, muito menos do drama que se aproxima. Já ouvira falar dos seus gostos pedantes e vorazes, como mantem o covil quente e os artistas vivos, como só ele reluz de soberba na pele sedosa de enfant terrible, como devora com avidez a cocaína que lhe recheia as entranhas de um fulgor que só o dinheiro e as drogas nos permitem.

Para mim chega. Acabo de ver o que não queria viver. Pé ante pé despeço-me com uma vénia das figuras imponentes e desnudadas que habitam as paredes do seu palacete, testemunhas silenciosas rodeadas de uma vegetação luxuriante e um céu imaculado; são de outra época e não as distingo, mas suponho que ali esteja Baco e Afrodite sob os trompetes de graciosos anjos. São os únicos sóbrios. Atrás de mim a infinita floresta de artistas, à minha frente a porta da rua e por detrás dela, o dilúvio. Prefiro avançar. Já vou tarde.

Deixo a Alma com os dedos enredados no cabelo ruivo de um pintor francês desconhecido que conhecemos numa das inaugurações ao final da tarde, ainda a tempestade não tinha chegado. A culpa é dela que me arrastou do atelier para o drama. Invadiu-me a porta com um murro desabrido: anda, hoje tens de largar essa tela e sair comigo, vais conhecer ao vivo e a cores o António Maria e aquela tropa fandanga, o bajulado e os bajuladores, mas primeiro temos as inaugurações, jantamos na tasca do Xico, eu pago, e seguimos para o palacete de sua eminência, quiçá ele engraça contigo e dá-te a conhecer ao mundo, porque, meu querido, a pintura não te paga as contas.

Disse tudo isto num fôlego e concluiu deixando o sorriso preso na boca. Devolvi-lhe silêncio e um esgar cúmplice. Queria pintar, ficar ali para sempre, na penumbra do meu soturno atelier, coberto de telas órfãs e perseguir o horizonte, aconchegando o impossível. Desejo pintar com o mesmo ardor de quem deseja matar por paixão. Erguer o braço para deixar fugir os gestos presos, depois fumar, expirando lentamente, beber um trago de tinto, sentir o corpo a ir, pousando os olhos nos veios que correm na tela e largar-me na descida vertiginosa da criação.

Hoje a Alma raptou-me.
E então, senhor pintor, em que é que ficamos, fazemo-nos à vida no mundo dos artistas?

Não tinha escapatória, os seus olhos entranham-se e desatam-me as palavras.
Como podes ver estou em modo caos, tenho a barba intratável, pareço um piolhoso sem teto, mas sim, vamos, sim, hoje vou ser o teu príncipe pintor!

Riu alto e depois abriu a boca.
Eu, corpo de anjo, eu quero ficar perto de ti e levar-te ao colo, zelar a tua alma, ser sempre tua sem o ser.

Conhecemo-nos nos bancos das Belas Artes. Ela chegou trazendo a sua imponência de origem francesa, elegante, altiva, inteligente, que desfilava com sobriedade e eloquência, deixando a escorrer baba de desejo a quem, por um acaso ou fortuna, se cruzasse com o seu destino. Pousou os olhos em mim e não mais os deixou.

Tu não és meu, és do meu coração para sempre, Adriano.

Amamo-nos despudoradamente. Em cada despertar vimos uma manhã de promessa. Pintávamos juntos, partilhando a paleta e até as telas. Vivíamos nus, seguindo apenas o ritmo do outro, o desejo e a pintura. Depois conheci o Alexandre e ele entrou sem pedir permissão. Apanhou-nos desprevenidos. Foi avassalador. Mas a Alma cumpriu a sua promessa.

Tu não és meu, és do meu coração para sempre, Adriano.

O amor é um lugar incómodo. O Alexandre entretanto partiu. Desarmei-me. Despedi-me do desejo de sentir o calor da pele de um outro. Refugiei-me no atelier.

Quando hoje entrei no palacete do António Maria, fui apanhado na torrente quente dos abraços, senti-me o príncipe que prometera ser e deixei-me ir, quebrei a promessa, cedi aos encantos, trespassei as portas do paraíso e sorri aos olhares benevolentes, bebi do champanhe que corria de mão em mão, dancei agarrado à Alma, rindo da minha perdição, rindo do amor, embriagado numa combustão de humanidade que julgara perdida. Depois uma mão quente e delicada fez-me levitar até um quarto em tons de azul no primeiro andar. O António Maria decidira capturar-me, tomar posse do seu domínio, fazer de mim o seu prémio, alimento e troféu. Foi um erro do destino, um passo mal calculado, um azar que derrapou. Deixei-o junto ao calor da lareira, morto. Estou de volta ao meu soturno atelier. A pintura é a única salvação do pintor.