O olhar da Aurora

Nunca me senti só, e hoje, sendo um homem à beira da morte, prostrado num quarto perdido, só não me sinto. O meu nome é Alfredo Joaquim da Silva Conceição. Olhando para a falha de dentes e a rede de vincos que trago na pele, devo ter mais de 90 anos, não sei ao certo porque a memória se foi apagando, mas seriam os bastantes, demasiados, se na noite passada não tivesse adormecido colado ao olhar da Aurora, inebriado pelo cheiro daquela imagem que julgava defunta.  

Nasci com o sangue bravo e o peso de um touro, numa aldeia debaixo de uma montanha autoritária, e logo me batizaram os ossos na ribeira que corria a cinco passos da porta, provavelmente para se descartarem de responsabilidades e futuros revezes. Éramos doze pessoas, eu o mais pequeno, numa casa de duas divisões, moldada com pedras inacabadas e paredes frias, cobertas de um musgo viçoso, por onde a água das chuvas navegava livremente.

Os meus pais, que Deus os tem ou o Diabo os carrega, não sei dizer, conheciam-nos a todos. A eles, nunca os conheci. Formávamos um bando de gente rude, maltrapilhos ranhosos, e vivíamos lado a lado com um número indeterminado de bestas. Não havia escola, mas tínhamos os cheiros da floresta, os trilhos, os bichos e as fisgas, as lutas, os arranhões, um prato de sopa e uma vida só por nossa conta.

Fui-me embora dali ao raiar da juventude. Parti sem plano, larguei-me num passo firme em direção ao horizonte. Procurei Lisboa. Nunca me perdi porque ninguém me esperava. Tinha a barba a enrijecer, o sangue a deslizar como um rio e uma vontade com punhos de granito. Não sabia ler, nem escrever, mas sabia lutar. Instalei-me à entrada da cidade. Conheci o submundo. Tornei-me o rei dos ringues, desfazendo adversário atrás de adversário. “Alfredo, o touro enraivecido”. Jorrava sangue e livrava-me de uma raiva que desconhecia. Não tinha casa, mas agora tinha dinheiro. Dormia com mulheres em quartos baratos e ali acordava. Lambia as feridas e voltava ao ringue.

De tempos a tempos entrava aos domingos em Lisboa. Levava comigo uma camisa branca por debaixo de um colete cor de céu. Não tinha amigos, as prostitutas deixava-as na cama, os colegas de profissão estourava-os a soco dentro do ringue. Ninguém se aproximava do “touro”. Ainda assim andava contente comigo e desconhecia estados de alma. Lisboa. Gostava daquilo. Disfarçar-me, levantar a popa do cabelo e navegar ao vento, sentir-me como um deles, gente da cidade.

Num dia santo esbarrei de frente com o destino. Ela saía de uma loja chique de pronto a vestir e eu caminhava distraído a olhar para os manequins da montra. “As minhas desculpas, caro senhor!”. À minha frente, ela, uma jovem mulher, esguia, recompunha o seu vestido feito de flores vermelhas, viçosas, ardentes de desejo. O tempo parou temporariamente, quando o seu olhar em tons de mel deixou cair um sorriso discreto, com um aroma de paixão que eu desconhecia. Foi como um soco sem resposta. Recompus-me. “... Caro senhor? Eu sou o Alfredo!”. Ficámos presos nos nossos sorrisos. “Eu sou a Aurora”, disse, baixando duas vezes as pálpebras, com uma candura reveladora. Tudo mudou e eu mudei-me para Lisboa. Aluguei um quarto numa pensão na baixa.