”… Eu não acredito que algum pintor possa ficar alguma vez satisfeito por julgar ter resolvido o quadro. Era um engano. Um pintor vive a fazer tentativas incessantes e consecutivas nas centenas ou milhares de quadros que vem pintando ao longo da sua vida. E ele sabe que não vai conseguir. Mas é esta insatisfação que é fundamental para que continue a procurar mais fundo. E esta insatisfação traduz-se em alegria porque significa a recusa da desistência e da facilidade.”
Pedro Chorão
O meu grau de equidistância para o Pedro Chorão é curto. Tenho um cordão de memórias que nos ata. Reconheceria uma tela sua no meio de obras de milhares de autores. Trato-o como um dos pintores mais marcantes que conheci e pude observar. A obra representa em absoluto a projecção da vida do pintor. A sua coragem. Uma procura radical e aturada da essência da pintura. Admiro a personalidade, o vínculo, o carisma e a persistência que mantém. É um pintor raro. É uma pintura inquietante.
Para escrever sobre o Chorão preciso de vos levar lá atrás.
Anos 70. Os meus pais eram jovens artistas. O Chorão também. Era da casa. Eu era uma criança. Não existiam os prémios EDP. Existia apenas a Gulbenkian. O meu pai candidatou-se e foi bolseiro em Paris. O Chorão também. Viveram juntos, entre Soulages e Vieira da Silva. Eram amigos, companheiros, partilhavam o mesmo ADN, as leituras e tertúlias na Paris que respirava mundo e celebrava com exuberância a modernidade. Neste outro tempo, neste outro lugar, o Justino e o Chorão, o jovem João e o jovem Pedro, selaram, ao som de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, a única promessa inquebrável, o único compromisso possível: pintar e fazer da pintura o sentido da sua existência.
O pai Justino e o Chorão eram presenças raras fora do atelier, iam e vinham, mas quando vinham não ficavam, seguiam o fio da tinta. Old School no trato, na forma e no acto. Vivia-se intensamente as vanguardas, as revoluções e a cidadania. Os cafés eram pontos estratégicos de reunião e debate. Até uma criança percebia. Nós, os Justinos, família de artistas/professores, tivemos o prazer de passear por Pascoaes, beber chá com a Sophia e ouvir a Natália a declamar. Estávamos sempre por perto dos artistas e intelectuais. Ligados ao Chorão. Lembro-me de uma casa na linha, com jardim, do seu atelier, das telas e dos cheiros e de como era difícil ouvir algo para lá da pintura. E lembro-me sempre daquela pintura que ele nos entregou e que cresceu comigo na parede da sala lá de casa e na sala lá de casa permanece, viva.
O contexto e época deixaram traços profundos que são interrogações do presente. Havia tempo e um destino a cumprir. O dinheiro era um valor e não a medida. O protagonismo, uma consequência, nunca uma ambição. A liberdade, uma conquista, e nada, mas rigorosamente nada, era dado ou se alcançava em vão. Era preciso correr para se alcançar.
Gravei para sempre o olhar sobre a prática destes dois pintores. Personalidades distintas, mas ambos corredores de fundo. E talvez esta seja a característica mais vinculativa da sua geração. O que mais surpreende na pintura do Chorão já não é o manter do seu passo interior, seguro dos abusos do tempo. O que mais surpreende é que mantendo esse passo a sua pintura é Incrivelmente actual, ela é no ano de 2019 gritantemente contemporânea, como assim era nos anos 70.
Começou a expor há mais de 40 anos. Ele que se mantém vibrante e conta com mais de 70. Começou relativamente tarde, se é que há tarde ou cedo para dar início. Depois não parou, nem sabe parar. Há catálogos e livros e múltiplos escritos que nos dão conta de um autor que ao longo de décadas se escudou em absoluto na pintura, num certo tipo de discurso e relação com o acto de pintar.
Basta ler algumas das suas palavras: “Se, porventura, a pintura tivesse uma conotação com a realidade e fosse passível de uma explicação, então já não seria pintura, assim como um poema ou partitura musical erudita também o não seriam. E não são explicáveis porque transcendem qualquer tipo de aparente raciocínio lógico. Eu, quando gosto de um quadro, digo para mim mesmo: quadro interessante, curioso. E gosto de ficar um bocado perplexo com aquilo. Sem uma explicação.”
O seu olhar é azul, denso. Sorri enquanto puxa de um cigarro. Observa sem dar explicações. Circula. Bebe um copo entre pares e regressa à solidão romântica do seu exercício. A pintura transporta nele uma interrogação permanente. E ele sabe-o bem. Brinca com uma extrema seriedade. Escuta Bill Evans e pinta. Os olhares mais educados admiram o silêncio erudito que ecoa dali. A boa pintura retira-nos para o interior, come-nos as dúvidas e retribui-nos.
De natureza reservada. Por vezes inacessível, por vezes delicado, por vezes inflamado. Trabalha em contínuo e o único compromisso que se lhe reconhece é com a pintura. É sequioso, porque pintar responde a uma necessidade interna permanente. Não procura o agrado e o conforto da superfície. Há um desejo visível de vasculhar e penetrar para lá do óbvio. Corre riscos, porque a liberdade só se encontra cruzando as fronteiras. É solitário, porque é de lá que lhe chegam as respostas que precisa para continuar.
Como escreveu sabiamente Rocha de Sousa há mais de três décadas: “... de certa maneira, há anos que Pedro Chorão pinta o mesmo quadro, acabando nele o que vai começar no outro. Esta identidade do fazer a refazer-se o já feito, sendo próprio deste pintor que projecta na alegria dos gestos a angústia da espera deles, é também o equivalente clarificado do mais profundo destino de um artista: cada recomeço não passa de um começo.”
E a cada começo somos confrontados com uma pintura que se aventura no vazio, que recorre ao escasso e vive de uma paleta reduzida, celebrando um minimalismo exemplar. Os planos sugerem mas não se prendem a nenhuma descrição. Há uma ambiguidade que deixa espaço à descoberta. Há rasgos de luz, como há penumbra cinza e um horizonte azul, Chorão. Há formas elementares e manchas e evocações subtis. Há geometria e uma arquitectura pessoal. Muito silêncio, precioso, e poesia para quem se deixa levar. Nada nos é oferecido. É uma pintura que questiona e prevalece vigorosa ao passar das décadas, às modas e a uma voragem de consumo rápido. É uma pintura com o cunho raro da eternidade. Tem um nome: Pedro Chorão.