A catástrofe do meu vizinho

O Alberto é o meu vizinho do prédio e gosta de conversar comigo nas escadas. Desde que me descobriu, há pouco mais de um ano, encontra-me todos os dias entre o primeiro e o terceiro andar, mesmo quando eu tento esquivar-me. Naquele primeiro dia, o Alberto descia a escadaria cavalgando os degraus com os olhos postos na pedra, num passo estridente que se foi aproximando, até que a sombra se fez corpo e esbarrou comigo de frente. Caí desamparado. Depois senti as suas mãos e os seus fios a colarem-se ao meu corpo, “que horror!... peço imensa desculpa, foi sem querer... olá, como está, eu sou o Aberto, o novo vizinho!”. Agora de pé, olhos nos olhos, o rosto redondo peludo do Alberto, sobrevoado por uma cápsula de caracóis, inspira-me mansidão. “Foi um azar!”. Mas não foi! Nem a sombra de um acaso. Deitei-me combalido, ausente do dia, a pensar naquele momento do Alberto, no seu toque carnal, no tom familiar daquele desconhecido e no zumbido da minha intuição.

No dia seguinte deslizei a porta da entrada ao final da manhã, como costumo fazer, sem hora marcada, logo depois do tempo dedicado à escrita, para ir tomar um café, e perscrutei a tempestade no horizonte, “ainda bem que o encontro, o Miguel vai-me perdoar a ousadia, mas trago-lhe uns biscoitos, foram feitos por mim, para curar as feridas do nosso primeiro embate”. Sorria avidamente. Trinta dias depois a tempestade chegou e engoli o primeiro calmante em frente ao espelho, absorto na noite e com os olhos negros de um choro cansado. Fui invadido por uma narrativa viva, um verme com pele de seda que se instalou como hóspede sem se deter na permissão, manipulando e atuando dia a dia com um cinismo tão elegante quanto extremo. O Alberto veste a sua personagem com a eloquência dos grandes atores, desmembrando-se em jogos psicológicos, arrastando-me numa história feita de diálogos capturados dos meus livros, tornando o absurdo numa ironia alegre, fazendo-me refém na sua sala à prova de som, sem escapatória, sem caminho de fuga, inebriado pela sua loucura. Pensei que tinha estudado os meus horários e rotinas, mas eu vivo sem elas. Tem a resiliência de um verme, aguarda como um morto e ao mais leve sinal de movimento, ataca. Suga com a delicadeza de uma borboleta e eu sou a sua flor, o escritor herói que preenche os dias do seu deserto com as histórias que o retiram da dor que forma cada capítulo da sua realidade, perdido que está na solidão do desamor.  

Hoje despertei para a fuga, quando caminhava no limiar da realidade. Respirei fundo e saí com o corpo a tremer. O Alberto surgiu na escadaria, como sempre. Confrontei-o, sabendo que lhe levava na minha mentira um terramoto interior, “Alberto, vou mudar de casa, esta ficção que vives acaba aqui!”. Não assumiu a surpresa, ripostou, falou-me de imediato das minhas personagens, como eu faço questão de as matar, sempre, em todos os livros. Trazia na voz um tom sonolento e grave, como se tivesse adivinhado, e concluiu, “querido Miguel, uma história tem sempre um fim”. Fechei a porta de casa. Continuo a tremer, trago uma dor interior que não sei pôr em palavras. O Alberto entretanto subiu ao terraço do prédio, gritou o meu nome ao infinito e atirou-se cá para baixo. Está ali, morto, deitado em cima de uma poça de sangue. A maior de todas as catástrofes é a vida, sem ela nada disto aconteceria.