Ludwig

Vou chamar-lhe Ludwig. A ver pelo nome é estrangeiro. Cola no estilo nórdico, também no corpo. É um tipo loiro como o sol, alto como uma torre, poliglota como o Papa. Culto, claro. Tem o sorriso de quem é bem alimentado. É artista a quatro mãos: pinta, esculpe, new media e performance. Aterra em Lisboa num dia solarengo. Trás uma montanha de ideias e uma alma juvenil, tão encantadora como o seu sorriso. Não sei quem lhe pagou a viagem, nem quem lhe vai pagar a visita, mas isso são pormenores, veste bem, naquele estilo cool new age ou renew age, não sei bem o que assenta melhor como descrição. Traz uma meia de cada cor, um peito atlético coberto de um rendilhado de rosas que acompanham o verde que lhe sobe pelas pernas. Deve ser vegan, presumo. Cereja em cima do bolo, adora o nosso mar, o nosso peixe, mas não o come, e as ondas, a portugalidade, portanto. Cliché. Conhece a nossa malta, vem de visita à tribo dos criadores artistas, convite de uma curadora, com quem já jantou um par de vezes, tanto cá como lá, na terra dos Ludwigs. Confirmando-se que é nórdico, sendo todo ele claridade, dispõe de um joker e nem precisa de o jogar: do António ao Zacarias, todos reconhecem naquele além fronteiras uma elevação que não alcançamos. O Ludwig entra e desatam num estrondo de palmas. Chegou. Forma-se um círculo, depois o circo. Todos para os copos e já.

Fotografia: Mjustino

A curadora investe em toda a linha, está frenética com o potencial que surge a seus pés, Sandra, Sandra, não é bestial o tipo, oh pá, veio daqui, dali e de acolá, conhece este, aquele e aqueloutro, e eu até já disse ao Guerra, é de agarrar, e tu, Sandrinha, vais pegar nele para atacar a tese. Vertem-se os copos. Caneco atrás de caneco enquanto a dourada está a grelhar. Acho ótimo. Eu tive com a Penélope e fechei, o ensaio está pronto, vais-te passar. E ela? Amou, ponto. O Alexandre agora que não me falhe com o site specific e tudo o mais. Melgou tanto pá. Lá me convenceu, vai incluir algumas daquelas telas experimentalistas e ainda implorou: esculturas, please. All in one, really?! Mas que vai fazer ele desta vez, o doido. O tema que  lhe propus foi "a ausência inconsistente". Tu bem sabes que a escola de Londres aborda este filão há décadas. Sim, claro que sim. "Parêntesis: na verdade a inconsistência é uma permanência sem ausência, como bem se sabe e melhor se vê por aqui". Duas curadoras, dois artistas, dois projectos.

O grande Ludwig não cabe em si, a cada olhar um sorriso, a cada toque uma palavra de apreço, tudo bem regado no calor da tribo. Ninguém por ali sabe bem ao certo o que o rapaz faz, but he's so special. Assino de cruz, Sandra. Faz um mês que jantou com o curador da fundação Nicola Trussardi. Mesmo?! Tá visto, o passaporte vem com um carimbo. Anda rapaz, apressa-te, é uma via aberta, o tal joker que te acompanha sem teres de o jogar. Ninguém se questiona, ninguém desconfia. Soube entretanto, por portas travessas, que é mesmo verdade, o jovem Ludwig encontrou-se com o Massimilliano, em Milão, num petit comité com mais 499 jovens artistas em fase embrionária. Dos casulos vão sobreviver dois ou três. Penei para encontrar, mas vi-lhe dois ou três vídeos. Tal e qual como imaginava. As questões de género como cartaz principal e toda uma bateria clonada, da sexualidade à cultura pop. Ambiente, claro, com um vídeo sobre a chegada do apocalipse. Um pastiche atrás do outro, um pouco na linha daquela moda de sacar teses de doutoramento da net. Note-se que há imensos protestos no universo das estrelas, sei que o Joseph Beuys tem uma pipa de massa a haver em direitos de autor e milhares de processos por utilização indevida do seu nome. Ninguém faz nada. A justiça anda pelas ruas da amargura. São futuristas com raízes lá atrás. Mas no presente o Ludwig já anda pela sobremesa. Acompanham-no, a tribo é lesta, cúmplice e generosa para com os seus. Entretanto tiveram imensas ideias, algumas subversivas outras submersivas, alinharam projectos, trocaram filiações ideológicas e políticas. Lambem-se.

Já o Alexandre está com maus fígados. A pele escura, o apelido Tatarra, o cabelo ao vento, preto oleado em desalinho, e a faixa da esquerda solidária que carrega na boca toda a amargura do mundo, são sombras ao lado daquela intensa luz nórdica da social democracia. Os loiros levam vantagem, a Norte o progresso. Mas Tatarra, agarrado ao Sul, não esmorece. Entra em cena. É trabalhador. Tem raízes familiares rijas, da antiga CUF do Barreiro, onde nasceu e cresceu. Sabe lutar. Começou a estudar filosofia mas desistiu. To be or not to be, Shakespeare persegue-o.  Está encostado às traves. Olha para toda aquela folia mas não tem bilhete. Tatarra pá, que fazes aí, no canto, quando entras em cena, sempre vais para a galeria dos eleitos? Chegaram reforços. Tatarra já não está só. Grande Jonhy boy, tás bem meu querido? Está quase, quase, a “nossa senhora” curadora está a tratar, já escreveu, eles leram, gostaram. Aqui entre nós, acho aquilo denso, já lhe disse, assim em fala mansa mas ela nem pestanejou, mas o conceito está lá e o texto, enfim, vai assim. Ela hoje só tem olhos para o pintainho loiro, olha para aquilo. Mas o título é bomba: “a ausência inconsistente”, dá para visitar todos os filósofos pá, abre-me as portas às profundezas, ao impensável. Este ano? Sim, sim, já comecei a produzir como se não houvesse amanhã. Estamos a teimar para ser em Abril, Primavera florida e revolucionária meu amigo, mas quero uma sala em grande, em ser tem de ser, to be or not to be. Concordámos que o conceito permite esticar-me entre a pintura e a escultura, para além do site specific, mas já lhes disse que vou produzir uma instalação vídeo. Tatarra dirige uma orquestra cheia de brinquedos, toca tudo e toca em todos, pim, pam, pum. Foi luta pesada meu chapa. Muito jantar, muita conversa noite adentro, muita festa e abraços, muito telefonema a praguejar. Já vertia fumo. Primeiro ela, depois eles. Aturar estes gajos, ninguém merece. Tá bem pá, mas quem é que consegue entrar no éden?! Um gajo novo como tu, um puto. Tens duas exposições meu querido. A “ausência inconsistente” não tem idade meu caro Johny, e eu, olha, produzo como ninguém e não os larguei. Sou revolucionário. Ela já não me podia ver, nem eu a ela. Tens de ir à luta, ponto. Tu bem sabes meu querido.

Chegou o café. Afinal o Tatarra vai na peugada do Ludwig, mas na vertente lusa, com muito peditório à mistura e a sombra que persegue os pobres. Tens de cavar a semente, cavar e cavar, deitar-lhe o teu perfume e encantos sensoriais, depois as raízes se crescem, se pega, és grande. Em terra de cego só assim se chega a rei. Os copos estão no ar. Um brinde. Entra o Guerra, proeminente galerista. Silêncio, primeiro, urras, depois. Está desvendado o segredo, seja bem vindo menino Ludwig. Anúncio feito. As duas alminhas partilham o mesmo palco. O Tatarra respira. Já é tarde, o senhor Silva quer fechar a tasca, a sua mulher, na cozinha, assiste a toda aquela azáfama através do postigo com as mãos na anca, farta do óleo das patanicas, mas encantada com aquela modernidade servida com o seu arroz de feijão. A receita está à vista, é simples. Ah, quase me esquecia, o meu filho de 7 anos tem sangue alemão e apelido Ludwig, quando crescer, em querendo, pode-se tornar um reconhecido artista, basta vir para Portugal. Brindemos pois.