Fotografia: Mjustino

O Pato

Felizmente em todas as guerras há momentos de tréguas. Dá para fumar um cigarro e descansar. Com um raio de sorte a pausa prolonga-se e cada um de nós aproveita a benesse à sua maneira. Nesse tempo todos desenhamos um projeto: quero isto, quero aquilo, raramente não se quer nada. Eu, para dar o exemplo, quero viver com a família no campo, rodeado de bichos dóceis e limpos, árvores de fruto frondosas sem bichos, um bom livro, almoços acompanhado de gente inteligente com conversas eruditas, um menu tão belo como a natureza que está ali para me abraçar, muitas festividades, danças, e a certeza de não me conseguir aborrecer. É uma empreitada ambiciosa. No seu todo é uma mentira consentida, tão verosímil como fugir desembestado a anunciar a morte da guerra, convencido que o desejo basta. Não vai acontecer. Já enchi a boca de ovas de esturjão e amei o que consegui e me deixaram amar. Tocou entretanto a sineta. Está na hora. São 07h30 da manhã, como duas torradas e regresso ao ringue.

Esta conversa vem a propósito de um pato que comi num restaurante chinês. Depois de almoçar vim cá fora, respirar e assentar a ave. Cruzei a estrada. Junto à parede, vermelha de sangue, que dá para a cozinha, um bando de cozinheiros aproveitava a trégua. Alguns fumavam. Todos eles vestidos de  branco, imaculados. Ocorreu-me o seguinte: quantos patos eles matam por mês? Fiz umas contas por alto. Talvez uns 300. Uma carnificina. Depois pensei no pato assentado no meu estômago. Quem era ele? Fiquei aflito. Imaginei o "meu' pato, morto, agora sujeito aos ácidos do meu estômago, como um pato especial. Só por isso devia estar vivo. Tudo nele era diferente. Nasceu num campo de concentração com umas asas defeituosas, tinha um corpo demasiado magro e demasiado esguio. Foi posto de lado para a carreira de tiro. Engano. Conseguiu fugir com as asas e o corpo. Atirou-se para o vazio e o maior defeito era conseguir voar. Voou. Andou por ali com o pelo ao vento e os olhos no céu. Aterrou na água, chapinhou e dormiu numa cama de erva. Sentiu a trégua. Teve a benesse de traçar um plano: queria rumar a norte, onde há mais lagos do que pessoas, mais bichos do que animais. Voava nesta benesse até que aterrou na rede da caça. Se voas corta-se as asas. Viveu mais dois dias de dores e angustia. Depois morreu, primeiro de susto, depois com uma faca a rasgar-lhe o pescoço. Soltou um grasnar aflito e o sangue começou a brotar em esguicho. Uma aflição para ele e um arrepio para nós. O corpo ficou por momentos a trepidar, aparentemente vivo, talvez na esperança da cabeça voltar, mas a esperança, tal como a cabeça, caiu e morreu. Foi cortado às postas num recanto da cozinha, longe dos olhares, para que não se sinta o cheiro da morte, nem a imagem grotesca de um ser esventrado por outro ser. Na realidade viveu menos do que os seus irmãos, mas o destino foi comum, apareceram no obituário, num menu de um restaurante, apresentados sem ponta de sangue, lustrosamente dourados e tenros. Não se pode voar. Somos incorrigíveis. Temos este mau hábito de matar. Voltei ao restaurante, sentei-me, chamei o empregado e pedi: traga-me um digestivo, por favor.