A trombeta da morte

O tambor da roleta russa acabou de encravar no meu telefone. Fui chamado de urgência ao Cerro do Adão para tratar de um caso bicudo. O Cerro é um lugar habitado mas vazio de civilização, ninguém lá vai e ninguém de lá vem. Vive ali a quinta geração de um pequeno magote de mastodontes. É um ponto negro perdido numa paisagem desqualificada. O acesso envergonha as cabras e a urgência que me chega deve ter a narrativa fora de prazo.

O “bando”, como são conhecidos, descende de uma linhagem geneticamente contaminada: são mansos, omnívoros e prosperam fora da lei que governa a restante humanidade. Guardaram a herança da língua, mas não a linha de pensamento. Destituíram-se de atos revolucionários e demandas. Os rostos, talhados na bravura da natureza e na irmandade dos cromossomas, têm uma aparência assustadora, rude ou deformada, mas não se lhes conhece uma vilania ou maltrato nos atos. Não há registo de balas perdidas. Respiram entre o Sol e a Lua. Subsistem maioritariamente pelas suas mãos e por obra e graça de um Deus misericordioso que não veneram. De seis em seis meses, estando o céu a descoberto, o governo despeja de pára-quedas um misto de fraldas, arrobas de arroz com casca e paracetamol. Chega!

O bando do Cerro, ao contrário do mais comum dos bandos, não tem um líder, nem uma ideia de poder ou disciplina. Vivem livremente na margem oposta. Não existe um livro da lei, mas existe uma ordem assente num caos comum. A voz da palavra é curta ou desconhecida. Ninguém se debate com a intriga. A ignorância criou uma moral escassa mas paradoxalmente civilizada. O único poder visível reside no grupo das matronas, e entre elas, a Raquel, a ovelha mais velha, controla o fruto do pecado: a “trombeta dos anjos” é a nave espacial que transporta os mastodontes em viagens lunares e concertos celestiais, uma planta psicotrópica, viciosa, que se abate sobre o bando nas noites de lua cheia, fazendo o céu e as estrelas descerem sobre uma fogueira com cheiro a jasmim.

mjustino

Entretanto as duas funcionárias ao serviço do Estado, mulheres experientes, que uma vez por mês prestam assistência humanitária obrigatória no Cerro do Adão, segundo os princípios da constituição, chegaram esta tarde desnutridas e levantaram a bandeira vermelha: há pelo menos um par de homens mortos, vítimas da “trombeta dos anjos”, um par de matronas sem pulso e uma criança de berço desnutrida, provavelmente com problemas genéticos e funcionais. Desta vez a festa descambou, estão descontrolados. Tivemos de fugir.

Espera-me uma viagem de dez horas e a encarnação de um capítulo do apocalipse, um desastre. Levo comigo o enfermeiro Silva e o enfermeiro Santos, garrafas de oxigénio, analgésicos, vaselina e quilómetros de gaze, pomada com antibiótico para as queimaduras mais profundas e umas quantas grades de cerveja para ajudar a ressaca dos que se mantiveram vivos. Muitos devem estar mortos. Deviam mandar o exército, mas atiram-me a mim. Nada disto é novo. Quando a “trombeta dos anjos” soa, a réstia de bom senso esfuma-se, o bando sente no calor da fogueira o abraço sensual de Vénus e atira-se de braços abertos ao abismo. Alguns perdem-se cerro adentro. Outros caem intoxicados, sem que a euforia jamais abandone as terras de Adão. Há gerações de cadáveres espalhados por mais de cem hectares. O mais intrigante é que o bando não padece. Não sente a dor, não sofre, não teme a morte, são um bando de idiotas, incapazes de olhar para o amanhã, onde a escuridão, quando chega, tem a luz do dia.