Bela Silva - Une Valse a Mille Temps

 A Bela Silva acaba de chegar de Bruxelas, a cidade cinzenta e chuvosa que um dia a raptou nos braços de um amor carnal, irresistível, como só os amores que amordaçam a vontade de beijos e a alma de promessas de infinito. Antes desse tempo saltou de cerca em cerca, voou virgem pelo planeta, destapando a vida que lhe sobra, numa dança sem fim, como se uma poção mágica a possuísse. A Bela sorri, sempre, com um sorriso que não a larga e vem descrito numa cartilha interior que define a vida como a arte suprema. Não cabe em nenhuma classificação.

O brilho do seu riso largo estende-se numa gargalhada que tal como ela não conhece os limites. Estudou les Beaux Arts. Dedicou-se sempre, muito. Guardou os ensinamentos de mestres como Querubim Lapa, Matisse, Delaunay, mas foi na geografia do mapa mundo que encontrou o seu fio, a liberdade de expressão. Abraçou todos os rios que a quiseram levar; floriu nas Américas, viajando, descobrindo, conhecendo gente quase tão curiosa quanto ela. Viveu e partiu. A Bela Silva chega sempre antes da sua arte. Cada passo um acaso que conduz a um novo passo. Domina a arte do encontro, são eles que lhes abrem as portas. A China e o Japão. Em cada recanto do planeta existe um fazedor, um arqueólogo, um arquiteto, um escultor, um segredo, uma história, uma alma sedenta por partilhar. São nestas intersecções, nos cruzamentos, nos acasos, na volúpia da viagem, que encontrou os seus saberes, o desenho, colorido, a cerâmica, palpável, as formas, a mão, erótica, o azulejo, do azul de Lisboa, a pintura, barroca, a escultura, histórica, expressiva e esplendorosa. A paixão, sabemos, não tem fronteiras, flui através das circunstâncias. A Bela abraça cenários que a encantam, entrega-se sempre sem pudor aos projetos. A arte é no seu corpo de artista uma dança inebriante, um prolongamento, uma extensão e um caminho, o cordão umbilical que a alimenta nesta viagem sem fim. Os ventos alísios acolhem-na e levam-na e há sempre mais uma estrada curiosa logo ali, ao virar do promontório.

 Liguei-lhe depois de muito tempo de ausência. Encontrámo-nos na cosmopolita Lisboa, num tempo quente, na esplanada do café Versailles. Demos um abraço português e pusemo-nos à conversa a caminho do jardim da Gulbenkian. Tinha saudades da sua gargalhada desprendida.

 Tu perguntas-me de onde vem esta energia, o meu sorriso… vem da genética, acho eu, só pode! Fui fazer aquele teste do ADN et voilá, disseram-me que os meus antepassados são do lado da Sardenha. E de facto a minha mãe tem aqueles olhos claros. Agora imagina, eu que olhava para o meu molde, para o meu corpo, para o meu traseiro, e pensava que os meus genes me ligavam a África. Enganaram-se nos moldes (risos). Afinal levantei voo na Bela Itália. Temos de ter sentido de humor porque a vida tem uma genética muito variável e às vezes surpreendente.

 Passaram 15 minutos. Temos as sombras do jardim. Trago na conversa um sabor a humanidade. Estamos em casa. Lisboa é família declarada, aqui tem as suas gentes, daqui vem o olhar que sobrevoa o mundo.

 Eu cresci em Lisboa e a minha família tem imenso impacto nos meus genes. As mulheres  tinham sentido de humor, eram todas para a frente. Os meus avós divorciaram-se. Imagina como seria naquela altura, pisar o risco, ir contra a ordem “natural” num país ignorante, cinzento, pobre e machista. Eu herdei esse lado do humor e alguma irreverência. E também o fazer. A minha família esteve sempre ligada ao fazer. O meu avô era homem dos sete ofícios. O meu pai trabalhava o ferro com um dom natural e a minha mãe foi modelista. Cresci em ateliers de vária ordem.

Sentamo-nos na relva junto ao lago. Corre uma brisa suave, o tempo de jardim passa devagar. A voz da Bela tem um padrão grave, feminino e intenso, que modela com uma sensual expressividade. Conta a sua história, fala de casa com a linha solta, da dualidade sentida, sem mágoas.

 Ao mesmo tempo cresci com pessoas que poderiam ter ido mais longe, com uma enorme energia e potencial, e não souberam ou não puderam arriscar. Recordo-me de em miúda sentir na pele as suas frustrações. Alguns só conseguiam estudar de noite. Era castrador. O meu pai quis dar um salto e ir trabalhar para França, mas a minha mãe ficou grávida e não quis arriscar. Ficaram. Não foram mais longe porque a vida não lhes trouxe estes cruzamentos em que nos encontramos com uma linha qualquer que nos destapa uma outra vida, o mundo das possibilidades.

 Pois é, por isso…

 Sim, pois é, por isso eu sempre tive a necessidade de aventura, de ir ao encontro do desconhecido, a necessidade de sair de casa, de agarrar a minha vida, de ir trabalhar, ser independente e viajar. Comecei por fazer viver o ser social que eu sou. Parti. Explorei vários países da América Latina, no México até me diziam, “Bela, tu és a Frida Kahlo portuguesa” (risos). O mais curioso é que deparo-me sempre com pessoas que me propõem projectos, que me confrontam com o saber fazer, e isso por vezes leva-me para caminhos surpreendentes: como desenhar e fazer uns sapatos ou, de repente, entrar na estratosfera e trabalhar com uma equipa para produzir um lenço para uma coleção da Hermès. Tudo é uma dinâmica, ora estou sozinha, ora a trabalhar com outras pessoa. Eu que sou um ser social, vou manobrando nestas fronteiras, até porque por mim estaria sempre por aí a dançar, que adoro (risos).

 Em criança eu escrevia postais a fingir que estava no estrangeiro”. A Bela já levantou voo. Peço uma pausa. Antes das despedidas e das viagens ao novo mundo, veio a formação, o percurso dos estudos. A Bela emancipou-se.

Nas Belas Artes senti-me castrada. Casei com dezanove anos. Buummm (risos). Quando fui para lá já estava casada. E naquela idade, naquele momento de explosão, de conheceres e dares-te a conhecer, num território tão vibrante e exploratório como as Belas artes… estava eu com a pressa de ir para casa fazer o amor (risos). Depois aos vinte e quatro anos decidi ir para a Grécia fazer arqueologia, que eu adorava. Foi uma chave, uma abertura, conheci um catalão com quem me envolvi, um arquitecto que me mostrou Gaudi, Miró. Depois fui para Inglaterra, estudei arts&crafts…

Pausa. Pausa! Bela… tu és emocionalmente física, um ser de múltiplos encontros…

Pois sou (risos)! Agora já penso um pouco mais, muito mais. Mas sempre me fascinei por pessoas que me trouxeram algo. Sempre gostei e quis aprender, e a vida deu-me destes encontros onde pode surgir a cumplicidade, a surpresa, que depois trás a vida, a paixão que nos envolve e abre janelas surpreendentes. Eu gosto de integração, gosto de trabalhar com arquitectos, com arqueólogos, com outros saberes, e de facto isso só é possível se viajarmos. Mas quando falo em viagem, falo em todos os processos que nos expõem. Pode ser através da literatura, que aliás é uma dos melhores meios. Ainda ontem estive a ver um documentário sobre o Henry Miller. Eu li o Trópico de Câncer e adorei, um livro que foi socialmente castrado e é uma viagem espetacular sobre o erotismo. Eu tenho a sorte comigo, andei por todo o lado e este gosto de viajar abriu-me a cabeça, criou um efeito dominó que deixou um rasto de gente tão interessante, tão relevante, que se mantêm como parte da minha vida. 

Voltamos ao caminho. Há grupos seminus deitados ao Sol, crianças, patos, uma viola a cantar. Caminhamos. Será o acaso um mestre de companhia nos teus processos ou um convidado esporádico?

Há um princípio: a linha, que conduz ao desenho! Eu faço cerâmica porque uma vez peguei no barro e ele tem aquela capacidade de transformação e de dar vida à linha, e isso foi uma surpresa, uma pura casualidade. Posso fazer de tudo, mas tudo o que possa fazer anda sempre à volta da linha, ainda que por detrás esteja o acaso. Sobre este estado de ser uma artista multidisciplinar, no outro dia encontrei umas cartas dos meus professores da América e eles diziam, “Bela tu és uma marca, as pessoas reconhecem o teu trabalho, podes fazer uns sapatos, têxtil, jóia, escultura…”. E eu faço, seguindo a linha. Mas claro que muitas vezes bato contra a famosa parede do narrow mind do mundo das artes, que tem sempre uma necessidade imperiosa de classificar e pôr um rótulo. O desenho é o princípio de tudo, ali está o tema central da linha, tudo tem a ver com a linha.

Como se descreve a linha da vida de uma artista: imaculada, sem pecado original, sem fardo, sem o peso do tempo, sem rasgões? Quem é esta gente que vive centrada sobre si, retirando das entranhas formas que nos fazem sentir a trama do indizível?

@BelaSilva

Nós trabalhamos numa zona borderline. Eu para ganhar a minha vida tenho de trabalhar, sou artista trabalhadora. Viver como eu tenho vivido, percorrendo vários países, tem um lado duro, despido. E depois, como dizias, o artista cria centrado sobre si, tem sempre presente o tema da solidão. Muitos não aguentam. A maior parte não suporta, desiste! Conheci ótimos artistas que cederam. É um caminho difícil. Criar é navegar numa outra esfera, precisas de estar ligada por um cordão, tens sair deste mundo, tens de gerir a cabeça, tens de a soltar e agarrar ao mesmo tempo. A nossa cabeça é muito importante. Quando eu vou ao contabilista o meu canal criativo não funciona (risos). E ainda temos a questão do tempo e da imortalidade. Até a uma certa idade vivemos no Olimpo, mas quando chegam as perdas, são pedaços de nós que vão, como o tempo que se desfaz. A partir dos 50 parece que se abrem as cortinas e tu não tens tempo a perder, fica tudo mais claro. Aquilo que vivo, aquilo que passa por mim é o que me inspira, e isso tem este meu riso mas também tem drama, claro.

Um artista é espelho, rosto da humanidade: no canto como no choro, na perda como na glória.

Eu ando para a frente, quero criar. Agora tudo me inspira, parece que ando sobre o efeito de drogas (risos). Há uma maturidade que tomou posse de mim. Sinto uma nova onda a chegar que resulta de um caminho feito, de todas estas viagens e encontros. O viver em Bruxelas. É bom sentir que há pessoas que nos reconhecem e que nos permitem viver da arte, porque eu várias vezes andei no fio, sem rede, e o caminho percorrido, com os seus abanões, conduziu-me a um novo horizonte. Temos de ser guerreiros e gerir o momento, a insatisfação. Tem tudo a ver com a tua impressão digital, se ela marca a sua posição, se é interessante, se é forte e te aguenta. É isso que garante a sobrevivência como artista. Essa impressão digital é um dom, não se aprende nem se entrega num diploma, são conexões que não se traduzem numa explicação.

 O passo conduz-nos ao portão do jardim. O Sol abate-se sobre nós. É hora. O tempo da nossa interseção terminou. Soltamos umas quantas gargalhadas e concluímos com umas selfies horrendas. Bela: o que importa mais do que o riso? Só a arte e a vida, estou certo.

A pessoa que esteve durante muitos anos ao meu lado dizia-me: “… contigo as coisas parece que fluem, parece quase uma ejaculação”, mas é que ele tem razão, eu sou um fluído que vibra, não fico duas horas a debater-me com uma linha, que depois não segue o seu caminho, e aquilo fica intrincado. Eu não sou assim, mas isto deve ter a ver com a infância, não achas? A minha foi passada com pessoas muito divertidas (risos).