Fotografia: Mjustino

Vou contar-vos. Nada disto aconteceu, tão pura é a realidade, tão pura é a ilusão. Eles são lindos e admiravelmente personalizados. Tudo lhes sobra: o charme, a beleza predestinada, estampada num corpo de seda natural; um rosto lindo, fulminante, com lábios de morder, ao ponto de matar a inveja; o dinheiro, que investem no bom gosto, claro, sem peso nem medida; a inteligência a rodos, herdada, que aplicam nas jogadas de xeque mate; mãos esguias, vozes sonantes, marcadas por um timbre com assinatura de estrela; e uma presença sem tradução, que chega perfumada, com notas de jasmim e madeiras exóticas, e logo se apodera de nós como Jesus do crente. São uns queridos, tanto uns como os outros. Eu adoro. 

Sou convidado a viajar entre eles como sócio honorário, observador, mestre de companhia, às vezes número da sorte, outras pingente lustroso, advogado do diabo ou conselheiro. Por vezes apenas ouvinte. Eles escolhem o título, eu decido, se vou ou não vou. Sou apenas sócio honorário. Disponho de regalias ímpares e não pago quota. Abstenho-me portanto dos excessos. Gosto particularmente das aventuras noturnas, gosto da selva, quando ela ganha luzes e contrastes misteriosos, e cheiros raros, e uma excitação peculiar, e notas de música, que embalam o pensamento numa ode venturosa, e sabores de paragens que desconheço, e tudo o mais que a selva e só a selva nos dá, quando saltamos lá para dentro e deixamos cair o selo da salvação. O seu perfume é um excesso libertador. Sinto-me lustroso e afortunado. As minhas queridas feras surgem na mansidão cénica. Olá meu querido, estás bem? Juntamo-nos numa clareira florida. Estamos todos bem. A fortuna acolhe-nos. A noite emana essências e bálsamos beneméritos. As línguas apresentam-se: belas e respeitosas. É essa a condição da minha presença. Gosto desta selva, das palavras, e todos eles trazem tiques e narrativas venturosas que desfilam sem pudor. Viagens bíblicas, repletas de versículos inesperados, faustosas passagens pelo céu e pecados merecedores de perdão. O palco é largo, tão denso quanto amplo. 

Pode verter, sim, muito obrigado! O vinho traz movimento e os átomos iniciam a dança do palato. Volto-me agora para a esquerda. Esbarro num tipo careca e de cara quadrada, baixo: olá meu querido, estás bem? Não faço ideia quem seja. Sorrimos. Tudo flui. Cada vez que esbarro recebo um sorriso. Por isso decidi: farto-me de esbarrar.  Deixo-me acolher. Vagueio nos recantos. Deslizo, suave, atento ao calibre dos toques, atento aos olhos e olhares, que tanto falam, sentindo a brisa à passagem, os hálitos que inspiram as anacondas; atento como um escritor que resume no subconsciente todo o drama e toda a trama; atento, sim, claro, porque apesar das aparências estou na selva. Num breve vislumbre sobre o cenário: há tigresas, chitas e leoas. Por deferência e cortesia, expectável numa aventura festiva, trazem as garras aparadas e recolhidas, e um manto estapafurdiamente belo. Estou protegido, devidamente assinalado. Há fumo branco a circular. Os copos tocam-se, as gargantas bebem e riem. As minhas feras estão felizes a destilar a alma. A noite avança. O lugar que estava morno e húmido, passou do morno para o quente e do quente para o quente e do quente para a vontade e da vontade para o desejo e do desejo para a ansia e da ansia para a angustia e da angustia para a morte. Todos sabem que é assim, a noite não capitula, nem cede, tanto mata como morre. Dia de festa é dia de sossego e anonimato, mas diz a lei que na selva reina a sombra, a aparência e a ilusão.