“… A linguagem tem valor, mas o que tem valor na linguagem são as ideias, e as ideias têm algo que vem depois. E isso que vem depois das ideias não pode ser transmitido por palavras…”
1982… a Argentina invadia umas ilhas sobre domínio inglês no Atlântico sul, dando origem à guerra das Malvinas. Spielberg libertava ET e comprometia o planeta com o universo. Michael Jackson espalhava o terror com Thriller, o álbum mais vendido da história. García Márques viajava até à Suécia, celebrando amor em tempos de cólera. Elis Regina fechava os olhos e partia em direcção ao eterno.
1982… o tempo que nos dá corpo tem uma escala tão própria que nos faz parecer eternos e mortais na mesma fracção. A dualidade constitui-nos. Como é possível desejarmos abraçar o mundo e num outro momento morrer e fugir para dentro dele? Quanta gente habita em nós, sendo este nós um só. Como apagar a personagem solitária que vagueia no escuro da noite e amarrar para sempre a luz que se abate sobre o olhar de um amor infinito?
1982… nasce Inês Norton.
Viajemos pois de 1982 até 2012, o ano em que a Inês atravessou a porta da minha então recém baptizada galeria. Demasiado jovem, demasiado bonita… demasiado frágil, conclui, muito antes de olhar para o seu trabalho. Um preconceito grosseiro tomou-me de assalto. Nem dei conta. Tinha o não no gatilho e estava pronto a disparar. Contive-me. Faltava abrir o portfólio e desatar o nó perante as evidências. Só depois poderia com um delicado sorriso pedir escusa, improvisando um caminho alternativo. Enganei-me.
Abrimos e folheamos imagens dos trabalhos. Escutei uma voz firme. Havia um discurso. Uma história com argumento e eu, que estou cansado de tantas histórias e conceitos quando o tema é arte, dei por mim a deter-me nos seus objectos feitos de muitas coisas e a acompanhar uma linguagem que, tendo sempre uma base metafórica, ligou-me de imediato à vida, ao ar que respiro e ao mundo dos homens. Alto, ela tem os pés na terra. Foi o primeiro capítulo.
Sobre o tema dos conceitos e as artes plásticas, tenho a acrescentar o seguinte: encontro-me e confronto-me frequentemente com autores que têm supostamente um discurso muito estruturado, todo um pensamento descrito por palavras que revelam os seus olhares intrincados, as interrogações contemplativas, angústias, revoltas, uma visão do mundo, statment ou… whatever… o que me parece como ponto de partida um caminho muito plausível e aceitável. Acontece porém que esse caminho é tortuoso. Expressar uma ideia original é um dos mais duros exercícios a que nos podemos submeter. Não está de facto ao alcance de todos. A vontade sim, a prática é outra coisa. Em muitos casos não resulta apenas do nosso desejo mas de um contexto histórico que está para lá do quarteirão do nosso ego. Mas mais difícil se torna quando sentimos o impulso de passar o conceito à praxis. Como eu costumo dizer, vestir uns calções, uma camisola de marca desportiva e calçar umas sapatilhas, contando lá fora aos meus amigos que agora pratico corrida, não faz de mim um maratonista, e sobretudo não faz de mim um maratonista competente. Ponto parágrafo.
Daquele encontro, daquela jovem artista… engoli em seco o primeiro olhar. Aprendemos muito a observar em silêncio. Foi o início de uma viagem e o seu azimute já estava marcado: “crio, acreditando que a arte é o caminho menos obstruido para a experienciação…". Deste ponto de partida a Inês Norton demarcou muito bem as linhas da sua procura. Mais, mantém-se fiel ao seu território. E nele vive e habita a dualidade. A dualidade do espírito e a dualidade da acção. A humanidade que co-habita na natureza: criando, construindo, manipulando. A natureza que co-habita e acolhe a humanidade: cedendo, gerando, abrigando.
O tempo mudou. A geração de artistas onde se insere a Inês Norton procura e escava num terreno tão fértil quanto consumido. É neste novo mundo, pejado de movimentos, objectos e relações, que a artista cria e nos interroga. O que sobra? O que nos resta a nós que penetramos natureza adentro, devorando cada fruto, cada raiz, cada átomo da vida? E que grandeza é esta, tão insana e deslumbrante, que nos abre ao universo e nos deixa a milímetros do abismo? O Deus criador. O Deus destruidor. All natural.
Acolhe a dualidade. Abraça ferro rude e áspero, transformando-o num objecto mensagem. Não se escuda no belo e no agrado. A estética é ponto de chegada. Constrói revelando sinais vivos de combate. No primeiro patamar está sempre uma interrogação. Os objectos nascem na margem do confronto com a realidade e surgem como metáfora aguda ao sistema, ao padrão instituído e a uma certa ideia mundo, a uma certa relação com o mundo, ao qual ela acrescenta nova consideração. O consumismo, a destruição, a apropriação… toda e qualquer intervenção humana despudorada, todo e qualquer frame que invoque o diálogo entre o natural e o artificial, entre a ordem viva e a criação humana, relembrando-nos fragilidades, perigos e ambiguidades, mas também relações de construção, são matérias filtradas num olhar atento e numa prática que entretanto formou um corpo de trabalho que se tornou robusto. O lado subversivo chega muita vezes com um toque de humor. O desarranjo das convenções e a ironia sobre a ordem estabelecida, são guiões de um alinhamento mental interpelador.
2019… A viagem continua e a Inês é uma maratonista competente. O presente, esse breve momento eterno, permite-nos prosseguir, obriga-nos a prosseguir. Não existe a perfeição mas um caminho até ela. A vida é um mero sopro e uma estrela demora biliões de anos até morrer. Não podemos parar, não podemos descuidar de pensar e viver a humanidade.
"[...] a obra é irredutível a uma simples coisa explicável pela ligação matéria-forma, porque ela tem esta capacidade de exibir uma verdade. Mas a verdade que a obra mostra não é uma verdade abstrata, um horizonte geral. É uma verdade situada no tempo e no espaço, que é, a cada instante, a de um mundo e uma terra determinados "
( Michel Haar na interpretação das reflexões de Heidegger em - A origem da obra de arte )