No Covil da Armada

Convido-vos a entrar na vida ilustrada do sargento Jorge Valter Ferreira, ele que larga cedo de casa, com a prontidão e a demanda de um oficial de polícia de segurança pública. É jovial o Valt, nome de miminho com que a esposa o brinda a cada final do dia, quando entra pela porta da alcova e repousa as armas no bengaleiro, por vezes a horas tardias, cansado dos colegas, maltratado pelos bandidos, exausto dos deveres oficiosos, maledicente da dízima, mas ainda assim triunfante, com um sorriso nos olhos que pousa com um gosto carnal sobre o decote sempre generoso de sua amada, onde pende um cálice tatuado e um escrito que a jovem mulher anseia levar consigo no dia do juízo final: Ângela&Valt, amor eterno! Mas de momento a morte ainda não tem data, o sangue fervilha e corre numa enxurrada sem pudor.

O ninho dos Ferreiras fica no número 3, na modesta rua da Armada, onde assenta este r/c direito, confessadamente herdado em boa hora, fruto da morte trágica e negligente do sogro, quando este, após uma partida de bowling perdida, se deixou levar aos comandos do álcool e confundiu cinco peões com pinos, produzindo a maior carnificina na história da freguesia, deixando cães e viúvas a uivar de dor. O pai não prestava, como se viu, padecia de sensatez, durante anos desancou metodicamente na mãe, até esta finalmente ceder e morrer, não da pancada, mas submersa num poço de tristeza. E de tristeza em tristeza, na morte por vezes chega a ressurreição e com ela a alegria. Será este o caso, sobre o pesar das cinzas deixadas no alcatrão renasceu a esperança de um novo lar.

Mas antes de um indício do desabrochar da flor, logo ao primeiro raiar, esquecido o enterro e o defunto, a Armada abateu-se sobre eles, cuspindo fogo e azedume. Foram recebidos pela azia dos vivos, sobretudo daqueles que tiveram de velar os pinos mortos. A filha do bêbado! Assassino! O que faz ela aqui, cadela! Permaneceram juntos e silenciosos numa pensão exilada no extremo do bairro, num quarto asqueroso, com paredes revestidas por um papel ratado e uma humidade que desafia o cheiro impregnado da naftalina. Uma temporada de meses infinitos com uma raiva submissa. Entravam na freguesia apenas aos domingos, a caminho da missa, cabeça baixa, decote apertado, boca muda debaixo da orelha caída, em sinal de penitência. Não resultava. O senhor padre contorcia-se a cada estender da hóstia sobre as línguas dos filhos do demo. Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do Senhor. Foram despindo a casa no silêncio da noite, num ritual despojado de aleluias, até só restarem paredes e sombras.

A liturgia alterou-se por ordem do diabo, no dia em que soou o carro-patrulha do jovem sargento, chamado a intervir numa tentativa de assalto com arma. Pum, pum, pum. Tiros. Surpresa geral. O covil da Armada é uma presa fácil mas desnutrida, a população um puzzle de velhos sem dentes e carteiras sem fundos. O bandido deve ter entrado por engano. Enfiou-se num beco e resolveu espremer a sua sorte. Os cães saíram à janela. Os desdentados rumaram em sentido contrário, tolhidos pelo som estereofónico dos gritos e o estrondo das balas. Foram feitos dois reféns, o dono do supermercado e a Ângela, a sua Ângela, que sendo época natalícia tinha parado para comprar uns sonhos para o seu amor. Por esta altura ainda não se sabe, mas no chão resta um terceiro corpo, abandonado, vítima mortal de uma bala maligna que atravessou o queixo e desmembrou o cérebro do caixa do supermercado, quando este, apossado de uma vã coragem, intentou tomar posse do bandido, torcendo-lhe a arma enquanto gritava por socorro. Morreu a ver uma bala chegar. Agora o gerente e a Ângela abraçam-se num grito mudo.

Ninguém sabe onde anda Deus nestas ocasiões. O que sabemos, na prática quotidiana, é que o destino gosta de uma divina comédia. Os clientes fugidos da saraivada de balas refugiaram-se por detrás do carro-patrulha. Estão hirtos do susto. O expedito sargento Valter usa o seu megafone. Rende-te, rende-te imediatamente, estás cercado! Mas o que chega é a brisa da tarde e um silêncio de morte. Vive-se o impasse. Os desdentados regressam às janelas. A Armada está ao comando de um proscrito, que desconhece a sorte do seu amor. Após uma horas de tédio sente-se agora a tensão do epilogo.

Por fim, o bandido entreabre a porta e mostra a arma, avança dois passos, traz colado a si um escudo humano. O rosto de Valter submerge na figura secundária: Ângela?! Ângela?! O rosto do pânico, amassado pelo choro e coberto de rimel desbotado, vai ao encontro do seu Valt como uma súplica, abafada pela sombra da pistola. Dizem que o salário do pecado é a morte, mas demasiadas vezes é o pagamento do justo. O sargento Ferreira evaporou-se por detrás daquele olhar perdido, despiu a farda e desapareceu sem deixar rasto. Ficou o Valt. Os olhos não enganam, estão fixos e em forma de mira, o corpo teso a ribombar de revolta, sedento de chegar ao pescoço do carrasco e sugar-lhe as entranhas. O silêncio é interrompido por novas ameaças. Os dados já foram lançados. Contra todas as regras de protocolo avança num passo marcial. Vai desarmado. O bandido exalta-se, aponta-lhe a arma ao coração. A plateia está sem respirar. Ângela chora com a alegria de um reencontro à muito aguardado. Já nada mais importa. Distam agora 5 metros. Valt leva-lhe a promessa do amor e a salvação. Não tenhas medo! Não tenho! A Armada assiste do camarote ao desenlace. O bandido é abatido pela surpresa. Ainda ali está, mas os olhos de Valt e Ângela deixaram de o ver. Love is blind.