Ralf, fuel the jet!

Fotografia: Mjustino

Desisti da escalada ao Sagarmãthã. Aquela montanha que atravessa as nuvens e nos conduz ao Nirvana, conhecida por Everest, está por estes dias com a lotação esgotada. O que era antes a aventura de uma vida é hoje uma procissão de turistas com uma estranha vontade de morrer congelados e uma tremenda falta de ar. Não estou para isso, abandonar uma cidade com o sonho de tocar no céu e acabar aflito montanha acima, num engarramento com gente desconhecida. Prefiro perder-me em outras selvas. Ainda pensei em ir em traje de passeio, roupa de meia estação e umas sapatilhas confortáveis para uma caminhada no sopé, junto a um ribeiro verdejante e ver o branco ao longe. Mas sempre se confirma, transformaram a aldeia e os aldeões numa agência de viagens, e agora junto ao ribeiro, o campo base assenta numa lixeira com vista para a montanha, e para encontrar lixo e gente sempre é mais divertido Nova Iorque.

Nesta minha última viagem conheci o Ralf, um alemão que vive num daqueles prédios que fazem precisamente lembrar a montanha. Não foi um acaso. O Ralf é alto, branco e louro, como imaginamos. Tem olhos azuis e umas bochechas bebé rosadas, com pequenos afloramentos de sardas miudinhas. O conjunto é pueril. A voz é grave, mas inofensiva. O Ralf é casado com uma alemã. A Astrid, que significa “divinamente bela”, é alta e loura, como imaginamos. Tem uns magníficos olhos azuis, o queixo erguido e uma pele visivelmente nutrida de onde sobressaem uns lábios carnudos pintados por um vermelho conservador. Existe um outro Ralf, e é aí que eu entro nesta história. O júnior anda na turma do meu filho. O sénior é um homem de negócios bem-sucedido, a progenitora trabalha em causas que prometem salvar o mundo. Mas vamos começar pelo princípio.

Aterrei no JFK há 30 minutos e já tenho o coração aos pulos, soam as sirenes, o aeroporto vai encerrar. Nova Iorque está debaixo de uma nuvem espessa, um fumo amarelado que vem de um incêndio de proporções dantescas no Canadá. Pensei que ia morrer torrado lá em cima. Não podia esperar melhor receção, os níveis de ansiedade estão equiparados à minha perplexidade. Quando deixei Portugal o único fumo que se avistava era branco e vinha das sardinhas que estão em festa, a celebrar os Santos Populares. A conclusão parece-me óbvia: evitem viajar porque o mundo se abeira do seu fim e Portugal está em festa. Infelizmente não tenho coragem para raptar os meus filhos e acabo eu raptado neste fim de mundo. Entretanto pousei as malas em casa das crianças e o fumo esvaneceu-se em gritos e saltos e beijos e abraços e risos e mais saltos e abraços e beijos e risos. “Pai, amanhã o Ralf faz anos e temos uma festa”. Não disse, mas pensei: who the fuck is Ralf? “É o meu melhor amigo e os pais são ricos”.

A noite avançou para uma manhã de sábado. As ruas estão desertas, nem gente, nem carros. Pudera. A nuvem de fumo mantém-se suspensa sobre Nova Iorque, o tempo não está para festas. Acordei com as pálpebras secas e o cérebro naquele processo lento de desalfandegamento interno: onde estou? Para onde vou? Entretanto chegam indicações precisas: passar numa loja de brinquedos, comprar um presente digno e dirigir-me à 1st Ave. com a 40th street, evitando o fumo que paira no ar. Damos as mãos e saímos de casa. Recolhemos a prenda, digna a meus olhos, e na esquina seguinte, numa colorida banca de rua, ensino ao meu filho um dos insofismáveis truques da cortesia humana, “com estas flores amarelas levas o Sol à mãe do Ralf!”. Seguimos. Estamos preparados para o ataque final. O céu continua bronzeado e o ar denso. O prédio é um monstro de vidro preto debruçado sobre um rio pardo. Nem tempo tive de treinar o meu inglês, vou disparar um “good morning” e logo vejo para onde me leva a língua. “Good morning!”. Se não estavam à nossa espera, o tamanho do meu filho desmascarou-nos. A receção é grandiosa. O balcão imenso. As paredes colossais. Os sorrisos largos. “Follow me, please!”. Fomos. Ouvem-se crianças. Esperam-nos um grupo de assistentes. Surge-me novamente a dúvida interna: who the fuck is Ralf? E logo outra: what I’m doing here? Por sorte as crianças são exímias tradutoras: “pai, pai, este é o Ralf, o meu melhor amigo”. Compreendo. O piso tem uma piscina interior longilínea, categoria superior, esculpida com “Bali Stone”. Lá dentro estão agora as crianças e um unicórnio insuflável. Deixo o meu filho entregue aos outros filhos e ao nadador-salvador e volto para a ampla sala decorada em tons de madeira. Sou pai solteiro, nota-se. Sento-me num canto do sofá agarrado a um copo com sumo de laranja natural. Espero algo que não seja a eternidade.   

O Ralf aproxima-se com um sorriso em forma de mira. Vem-se apresentar.  Não tem piada. Apetece-me erguer os braços em sinal de rendição. É como se uma nuvem pejada de sofisticação viesse no nosso encalço e nos sentíssemos nus, desbravados de modos, vazios de mundo. E agora? Agora é puxar o lustre ao gene lusitano e engolir em seco, num único ato de fé e redenção. Sim, sou eu, o pai daquela linda criança, meio alemã, meio portuguesa, que está na piscina em cima do unicórnio a brincar com o vosso pequeno Ralf.  Tenho 2 berlindes de um azul vivo em cima do castanho dos meus olhos. “Nice to meet you!”. Fui eu a falar, foi o que me saiu, ao mesmo tempo estiquei o braço e a mão. Em sentido contrário, um sorriso de dentes talhados, silencioso e prolongado, saiu de uma boca com lábios generosos em forma de coração: “Hey, I'm Ralf! Have you looked at the sky? The world is falling apart”.

A sala está bem composta. Há um palhaço alegre, à espera das crianças, cinco casais com ar infeliz, à espera do fim, uma divorciada fumadora, deprimida, mas com uma saia rosa escarlate a servir de disfarce, e uma outra, com com tiques de alcoólica, alta, ruiva, com feições irlandesas, onde habitam as sardas, e uma voz rouca que evoca o riso com a mesma facilidade com que reclama mais um copo. No conjunto registo ainda um par jovial com bustos eslavos, no tom dourado do cabelo e no brilho esverdeado dos olhos, com ossos molares esculpidos por Apolo; são os dois mestres desta cerimónia, provavelmente colegas amantes que partilham um quarto e nele todos os sucos da paixão: If the world is dying, we'll live alongside it.

O Ralf foi e regressou na companhia da Astrid. Tenho agora 4 berlindes de um azul vivo a desbotar o castanho dos meus olhos. Do you want to see what the sky looks like at the end of times? A voz de Astrid cheira a jasmim. Convidam-me a subir ao quinquagésimo terceiro andar, mas só no fim da festa. Até lá o palhaço, que por sinal é mágico, tem de prestar contas com os seus truques que farão aparecer e desaparecer a realidade, sendo a realidade a mesma. As crianças aplaudem. Pura ilusão. O caos instalou-se. Há velas foguetes, canhões de confettis, balões a voar, estrelinhas. O Ralf observa-me ao longe: yeehh, the world is falling apart! Dois passos atrás e retiro-me. Na sala aquário há uma travessa com asinhas de frango e bufallo sauce em cima da mesa. Vou comer antes de embarcar em outros voos. 

Alguém me contou que há uma maneira elegante de sair daqui, mas o elevador é uma magnífica caixa dourada sem comandos. A festa terminou. Os convidados acompanham as crianças ao andar de baixo. Eu e o meu filho temos outros planos. As portas fecham. Subimos. Ralf, we’re on the way, fuel the jet.