O olhar é porventura o melhor revelador da alma. René Tavares (1983), artista plástico, vive em São Tomé e Príncipe mas reside em Lisboa. Esta definição indefinida na forma de habitar, retrata na perfeição uma certa noção de casa, sendo a casa o mundo e o mundo o lugar a que se chama casa. Um espaço amplo e colorido. Ponto de encontro, logo ponto de partida.
Recentemente tive a felicidade de permanecer e trabalhar num país africano. Tinha vontade de pisar aquela terra. Sentir pele com pele. Olhos nos olhos. Cor com cor. Aterramos e sentimos. Não sobra espaço para ilusões. É imediato. Regressamos e percebemos: ninguém chega ali por mero acaso ou circunstância. África é o último reduto de uma maternidade perdida. A ligação ao princípio. Sentimento profundo de casa e comunhão com a humanidade.
Nada disto é novo, eu sei, mas tudo isto, a cada dia que passa, faz-nos falta e confronta-nos sobre o sentido e dimensão das nossas pequenas esferas. Urge regressar. Em pensamento e acção. África é uma montanha gigante que transpira vida e horizonte. Ali tudo é drama feito sorriso, acção e vida. Mesmo quando os forçamos a vestirem a nossa pele. Aqui respiramos uma obesidade mórbida e gulosa. Faça-se um Live Aid em África para resgatar a Europa.
Interessa-me a carga histórica de tudo isto, viagens e migrações, as miscigenações e resultados, proximidades e contrapontos, o pulsar do continente. Também as cores, rostos e clichés associados.
Interessa-me o pintor antes da pintura: o René. Basta o sorriso para sentir o pulsar. É generoso e leal. Expressão agradecida, a cor quente da pele, o afecto, o tom próximo que coloca nas palavras, e tudo isto é também África.
René Tavares é um explorador. Defensor activo da sua causa: África. E do seu povo de São Tomé. Defensor ainda de causas e das histórias que carrega consigo. Estudou em Dakar onde se formou. Depois França, com a sua ligação visceral à ex colónia, Senegal. E Portugal, onde reside mas não mora.
A pintura, como ponto de partida, está associada a uma representação teatral renascentista, herança que se tornou em tempos um símbolo de resistência à dominação colonial portuguesa: o Tchiloli. Uma apropriação da cultura europeia que deu lugar a um fenómeno cultural Santomense.
A mescla está na raiz dos seus processos. Constitui e forma o que retrata. Profundamente africano, sim. Na vocação e na génese, nas cenas do quotidiano das ilhas, numa pintura que evoca a mestiçagem. Nas cores vibrantes, num traço que nos liga de imediato ao Sul. Sem necessidade de legenda.
Mas também um contador de histórias, profundamente europeu, marcado pelas múltiplas travessias culturais que o constituem. René Tavares é um migrante com uma visão privilegiada.
Escrevo com o olhar cómodo de um europeu. Sinto o privilégio de observar o traço e as leituras, a síntese e genética de um olhar livre e crítico. Africano. A pintura de René Tavares é a vida de René. Trespassa fronteiras e o tempo. Circula na casa mundo. Respira o ar de um repórter atento e cúmplice de causas, do quotidiano e da vida. É uma pintura ampla.
Utiliza a escala. As suas telas apresentam-nos pessoas, vidas e contextos. Uma janela real que pontua e marca factos e acontecimentos. E também por isso os políticos e o sistema surgem retratados com tanta frequência. No seu palco movem-se aqueles que mexem com África e com os temas que maltratam o continente, sejam eles: racismo, corrupção, a ganância, ecossistema ou as migrações. É uma pintura crítica.
E este é sem dúvida um elemento forte do seu traço. Mas a dança, a música e as relações próximas, os afectos, tudo tão constituinte da geografia africana, são o elo mais forte e vivo. Há mais vida para além da Europa, ainda que haja uma vida feita de Europa. René Tavares sabe que é do mundo. Existe nele uma predisposição para acolher e celebrar com cor, seja o que for, seja como for. A pintura retrata o olhar vivo, revela a alma atenta, deixa-nos em diálogo com as suas e as nossas histórias.