Oh Captain my Captain

Estudou economia. Viajou. Esbarrámos no mesmo espaço, numa esquina improvável. Eu encontrava-me a organizar uma exposição, ele a operar como diretor e produtor criativo. Trocámos dez minutos. Durante uns meses convivemos num velho armazém onde ele colocava na parede papéis, desenhos enormes, uns seguidos aos outros, no que parecia um frenesim criativo. Nenhum estava terminado, mas cada um deles parecia concluído. No chão um desalinho de tintas. Admirei a sua atitude altiva. 

Esguio, erudito, o Diogo Barros Pires transporta uma energia concêntrica. É solto. Agrega a atenção à sua volta. A pintura é tardia, mas tem uma estrutura interna bem assente. O seu Eu é explorado incessantemente, na pintura surge enquanto persona cinematográfica. É leve na aparência com que se apresenta, na forma como se confronta com a pintura, na destreza e vontade que manifesta. O resultado plástico é inclusivo, transporta-nos. Encontramos Picasso tranvestido, uma aparição do século XX a desfrutar de uma segunda vida, se bem que a boa pintura nunca morre, quem vai morrendo são os homens. Desenha estórias, com a mesma voracidade com que aparenta viver. Usa uma liberdade narrativa que vem da sua falta de pudor, sem medo de chamar e de se agarrar às personagens que formam a sua libido de artista, dentro do seu tempo. 

As pinturas representam uma extensão da sua vida, das suas cenas. De facto tudo é teatral. Os nomes das obras: a Menina de Arroios, a Ritinha da Ventoinha, Venha o Diabo e Escolha… são títulos do melhor cinema português; os corpos, que surgem em cenários do quotidiano, são actores ilustres, representações da sua vida, das nossas vidas, do quotidiano banal ou de alguma excentricidade que não alcançamos. São peças únicas, narizes aquilinos, olhos esbugalhados, comédia e drama, oração e fantasmas, a avó excêntrica, cães e gatos cheios de mimo, ódios ou afetos, tudo é languido, mas as cores intensas. A mão é decidida e veloz, não teoriza, avança entre a cera e o acrílico, porque o óleo demora o tempo que ele não tem. Alguns dos cenários por onde se move deixam-me expectante, aguardo sempre a próxima cena que não surge. A explicação está sempre no pintor e nunca na pintura. A pintura é uma extensão de um desejo, o pintor é a vida. Nas telas ou nos papéis, a leitura mais óbvia, a escala mais próxima das irmandades, liga-o a Paula Rego. Sabes que te associam, não sabes? “Já me disseram… quem me dera, maravilha quando me dizem isso, ela é fantástica, não é?!”. 

Tem esta coragem, é um ser anacrónico, quando sente o desejo de o ser. É livre. Não tem medo. Tão pouco se vangloria. Assume-se, ponto. Bato palmas a esta honestidade, tão rara que me leva a um parêntesis crítico, vejamos: a arte é um terreno de exploração, mas o que nos é dado a assistir levanta interrogações, no que se revela ser uma procura forçada de originalidade, quer nos conceitos, quer nas formas. Há milhares e milhares de enganos carimbados com um selo dos curadores, um pauzinho aqui, um tijolo ali, uma tela violada, um vídeo autofágico, um som extra sensorial, uma exposição onde todos estão mas ninguém vê, porque simplesmente… não interessa! São tribos concêntricas que se lambem, critérios dúbios, relações de dependência, mãos dadas às conveniências e conivências, conversas pretensas, jantares filantrópicos, intelectuais de algibeira, lábios que se penetram em dependências, textos e textos e textos explicativos que ninguém quer ler. Uma imensa vacuidade e ignorância, muita, tanta, toda ela assumida com pujança. A asneira de repetida tornou-se um padrão, um sofisma. Ninguém se dá ao dever de questionar. O Diogo Barros Pires é alheio a este circo. O teatro onde habita é um campo com uma plasticidade distinta, só se compromete com o ato de viver e representar. E isso não significa que o seu grafismo seja único ou mais merecedor ou outra coisa mais, para além de assumirmos como uma pintura verdadeira e uma expressão autêntica. Esse é o porventura o seu maior trunfo, uma verdade num tempo devoluto.

Não sei precisar se vive no desalinho ou no desequilíbrio, sei que é desse estar, daquela vibrante loucura das minorias, que brota sempre a mais vibrante verdade. Não há filtro. Só assim se avança, só assim se foge da banalidade. Opõe-se a falar da pintura: para quê?! São os olhos que o levam. Tem um cérebro romântico, mas não tem no seu jeito uma escala que o defina. É universal. Defende o belo mas não toma posse dele, é pintor como um outro é pedreiro, não discrimina esses outros, não os penaliza, nem o género, nem o ofício. Mas sabe que é diferente, que personaliza a fuga à regra que tantos ambicionam mas raros são os que assim conseguem viver. É difícil não nos centrarmos nele. Estivemos 5 horas a conversar, sem olhar para a pintura. O atelier é um armazém escondido, o portão roçado, a porta estreita. Bato: pan, pan, pan. Lá está ele, cabelo fartamente desalinhado, brota fumo, diz um "bom dia" com um leve esgar da boca e vira as costas. Desaparece por detrás do fumo. "Entra", diz. Não é desdém, é assim. Traz uma camisa anacrónica e umas jeans sem identidade enfiadas nas pernas esguias. Mais uma cena do filme, o cenário surpreende, uma garagem subvertida com gente subversiva. O Diogo não lhes liga mas gosta de pessoas. Tens de merecer a sua atenção. A vida corre e ele vai com ela, não se detém na preguiça. Não é uno. O pintor é economista, o economista é carpinteiro, o carpinteiro é pintor, depende dos dias, depende das horas. Não precisa de pintar para viver, mas vive a pintar. Encontrei-o de fato macaco azul, cheio de nódoas de tinta. Estava no telhado com uma rebarbadora a abrir luz. Quando parti ficou ao telefone a responder, como consultor que é, a uma multinacional. De certeza que às 02h00 da manhã estará no meio das cores e das tintas, do incontrolável fumo e das estórias, das suas estórias. Chegou a minha hora. Cruzei a porta que dá para a rua. O Diogo ficou, por detrás do seu portão secreto e eu, eu parei, sorri e exclamei… oh captain my captain.