Martinho Costa to Ground Control...3, 2, 1... and liftoff

Todos sentimos na pele que a vida é uma viagem. Por norma interessante, mas curta. Nascemos, berramos, experimentamos 1970 sensações diferentes, passamos bem e passamos mal, com alguma sorte rimos mais do que choramos e depois, depois chega aquele dia em que seguimos de foguetão para uma viagem no espaço. Durante os dias da Terra encontramo-nos uns com os outros e nunca paramos de viajar. Conhecemos todo um alfabeto de almas, mas na realidade… viajamos sós. A grande aventura da humanidade será sempre este percurso interior que nos fascina e sacode a cada dia. É assim. Um rol de personagens numa película sem fim. E os artistas fazem parte de um elenco especial. São um bem escasso que por sorte encontramos num certo cruzamento.

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Desde o virar do século que o observo. Conhecemo-nos pouco mas confio na minha intuição. O que procura, o que pinta? E que realidades são estas que nos apresenta e descreve? Martinho Costa é um viajante solitário. Vejo-o a chegar debaixo de uma chuva torrencial. Traz um passo vivo e um sorriso afável, mas o olhar esquivo e a atitude invariavelmente reservada desmascaram-no: há uma timidez endémica que conduz à interioridade. E é ali que habita o pintor, numa cápsula que resguarda e lhe permite captar a realidade desde de dentro.

Entrámos. O atelier, como o de tantos outros pintores, é uma oficina, um posto de trabalho. Desenganem-se, não há aqui uma gota de romantismo livresco. Pintar não é apenas um desejo ou uma manifestação de carácter artístico. Pintar é uma obsessão. Uma necessidade interna, um acto compulsivo e a ligação necessária entre os dois mundos onde habita. A relação com o exterior é intensa. Os olhos movem-se, captam, retém imagens e mais imagens, se possível tudo, fotografam, e depois retiram-se, partem ao encontro da tela, o seu espaço de conforto e relação.

Há essencialmente 3 tipos de artistas. Há artistas que trabalham para agradar. Há artistas que trabalham para desagradar. Há artistas que trabalham para cumprir o seu destino. Os primeiros querem fazer parte do sistema, precisam de colo e adoração. Pactuam com as modas e estão sujeitos às vibrações externas. São adoráveis e podem ser adorados por um período máximo de 10 anos. Depois cansam ou cansam-se. Desaparecem. Os segundos, salvo raras excepções no tempo, são mentes revoltadas, com instinto revolucionário, com gosto pelas artes mas quase todos com notória falta de jeito, e talvez isso explique em parte o sentimento de revolta. São anti sistema. Muitos são anti tudo. Vivem em nichos fechados. São auto sustentáveis e têm uma versão de universalidade do tamanho do nicho. E uma aversão universal ao belo e à ordem estabelecida. Têm sempre um guru, normalmente enterrado há décadas, que reverenciam e imitam descaradamente, sempre como se fosse a primeira vez. O discurso e a narrativa conceptual subjugam a prática e o objecto. Há mesmo quem use a expressão: o rei vai nu. Nem sempre vai, mas vai quase sempre. Por fim os artistas que como Martinho Costa seguem o seu destino. Aqueles que no seu tempo dão resposta a uma procura interior e nela se retém. Gostam, como todos os demais, de ser adorados e adoram vender. Mas não se vendem ou capitulam. Têm, como todos os demais, os vícios e a nobreza dos seres humanos. Mas o seu centro está num destino interior, numa necessidade de seguir um caminho tão claro que prevalece sobre tudo o mais. Em todas as áreas e nas mais distintas linguagens, estes artistas destacam-se porque reflectem sempre um grau de universalidade (ainda que não consensual).

 
 

“… Eu nunca mas nunca procuro a imagem perfeita, já tive essa percepção e sinto-me como se me tivesse a aproximar do abismo. O que me interessa é precisamente o oposto, pegar na imagem banal e atribuir-lhe algo”. Usar o banal para escapar ao banal, paradoxo ousado sobre o ponto de vista crítico e da percepção.

Revela-nos a sua verdade: “… a minha pintura não tem riscos, as pessoas aderem facilmente. A senhora agricultora aqui do lado, provavelmente gosta de algumas destas pinturas. E esse lado democrático também me interessa. Mas não entro no hiper realismo e não facilito a percepção, quando isso se aproxima, quando uma imagem gera demasiados consensos, aplausos e um caminho de vendas… eu retiro-me de imediato. E aconteceu-me algumas vezes na minha carreira.”

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O Martinho é um consumidor voraz de imagens e acontecimentos. Na primeira fase da sua carreira, agora quase a fazer 20 anos, utilizava a Internet para viajar. Trespassava literalmente o mundo e trespassava literalmente tudo, mas mesmo tudo… desde que algo naquela imagem lhe trouxesse desconforto, desconcerto, desalinho, por mais simples que fosse. Cenas familiares, objectos, arquitectura, naves espaciais e satélites, manifestações, desastres, violência… há sempre uma fronteira ténue que ele persiste em manter. Não é hiper realista, mas a realidade está ali escancarada. Capta a imagem com a aparente simplicidade descritiva de um repórter, mas tem um lado disruptivo latente, um olhar sobre causas que transporta e defende: democracia, igualdade, o meio ambiente, o consumo, a precaridade. A crueza, o real cru está sempre bem presente. O mundo que o Martinho aborda está todo ele um pouco como uma couve, corcomido.

Hoje em dia utiliza a máquina fotográfica. Capta centenas e centenas de imagens. Apaga as “demasiado perfeitas”. Já não vai à Internet buscar o mundo para se saciar, “… apercebi-me que somos tão ricos em Portugal, há tantos caminhos a explorar, até de um ponto de vista não trabalhado na história da pintura portuguesa. Tens um Malhoa, um Henrique Pousão (brutal), e sem o desejar ou procurar, eu diria que num contexto da arte contemporânea isto até suscita controvérsia e comentários. Gosto disso, de estar um pouco no contra poder, sem ser uma provocação académica. Não sou e não quero ser moralista, de nada, mas interessa-me uma certa crueza e um país algo esquecido. Mas recuso-me a ser militante e panfletário. Sou um pintor.”

E começa o seu jogo. A necessidade de fixar aquele frame numa tela. Um milésimo de segundo. A imagem que passa pelos seus olhos e do cérebro se dirige a umas mãos que constroem e elevam lentamente uma nova representação da realidade. A pintura transporta-nos para um outro patamar. O pintor devolve-nos uma certa visão do mundo. Cria uma narrativa cinematográfica, reflecte na tela um outro tempo.

Martinho vive para pintar e pinta a partir de uma intensa vivência interior. Lá fora está a paisagem, o mundo, a vida. Tem a perfeita noção dos desalinhos. Deixa-se interpelar mas não julga. Pinta, porque esse é o seu destino. É um viajante e um recolector insaciável. Precisa de ver e absorver o exterior, e depois recolher na solidão da tela, ali a vida e os seus fugazes momentos são elevados à condição única da pintura.

 
 

O Vai Vém... e nada fica!

Campanha em espaço público
O que se lê?
Como se interpreta?
O que suscita?

 
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Há umas semanas atrás, numa conversa com um pintor por quem tenho enorme estima e consideração, ouvi um comentário inesperado. E era sobre mim. Sobre a minha forma de observar. Não esperava. E quando algo incide sobre nós, o nós, o eu, é tão poderoso que nunca ficamos indiferentes. Ainda ando a pensar no que me disse. Já lá vão umas semanas. O talentoso e amável pintor tinha lidos um destes meus “posts”.

Oiçam-no: “… mas é curioso oh Justino, na tua escrita parece sempre que tens um parti pris, um olhar muito crítico sobre o meio das artes. Não, não, eu entendo-te, tens toda a razão, mas…”. O que me espantou não foi o comentário atento. Foi a verdade. E a verdade é como o ego, faz-nos pensar. E ouvir com clareza a avaliação de uma personagem insuspeita… fez-me perguntar do porquê do olhar crítico. E depois aquele “eu entendo-te mas…” em suspenso, deixando antever o perigo de despeito pela ordem. Riam-se, o campo das artes é o maior playground do planeta.

E nisto, caminhando eu pelas ruas da capital, deparo-me com este enorme cartaz branco com umas letras negras. Estanquei: “mas… o que é isto?”. Não conseguia ler. Tentei mas não consegui perceber as parangonas. Parei porque desde os anos 70 vivo em Alvalade, onde se encontra a galeria Quadrum. E isso sim, consegui ler. Parei porque partilho do meio das artes e faço parte dos 0,005% de lisboetas que conhecem esta galeria, este nome. Tirei a fotografia e segui caminho. Mas na rua permaneceu um cartaz órfão de razão, alma e identidade, um nado morto que jamais chegará ao destino. Fará algum sentido esta crítica?

 
Double Face, Bruce Nauman, 1981

Double Face, Bruce Nauman, 1981

 

Confesso que no mínimo veio resgatar-me e traduzir o valor e o bom sentido da se poder criticar. Vejamos: a estrutura do país mantém as pessoas afastadas das artes. Não há e nunca houve dinheiro. Há porventura crédito, mas mal parado, se é que me faço entender. Há umas teorias sobre a importância das artes plásticas, mas uma prática contrária. Face à realidade todos os participantes activos do meio se queixam: artistas, curadores, galerias… Todos e muito, cada qual com as suas razões. O mercado é afunilado e estimula a autofagia. O público é escasso, tanto como o interesse que os meios de comunicação revelam. As artes plásticas sobrevivem numa espécie de placa tectónica, jogo de forças que por vezes abana e outras derruba. O sistema parece conduzir e induzir ao autismo: como ninguém nos ouve e entende, desatamos a falar ao espelho.

E isto e só isto explica que neste contexto seja possível comunicar assim. Perante uma oportunidade rara de ampliar a voz, de se relacionar e atingir um público distinto, abrir as portas, chamar, partilhar e interagir, usando um meio que existe para chegar a um público vasto, para gerar uma pedagogia de participação (ninguém os deve ter obrigado, espera-se), a opção foi ficar a falar dentro de um pequeno cubo hermético, falar para dentro, falar como e para o meio, fechar. Não me ocorre um pensamento sobre o que os responsáveis poderão assumir sobre o acerto e resultados de uma campanha destas. Mas para quem foi feita esta campanha em espaço público? Bom, procurando ser benevolente, enfim, podíamos tentar ver aqui um rasgo artístico, mas a fórmula nem sequer é original.

Tudo isto é porventura muito contemporâneo, muito actual, muito moderno, muito tudo o que quiserem, mas muito pouco acertado. E sim, vale a pena dar o peito às balas e abrir a pena à crítica, porque a liberdade de pensar, sendo plural e livre, necessita de espaço e abertura, para que a arte não se converta num feudo de um pensamento pseudo/acção libertário.

PS: ahhhhh… já agora, talvez o mais importante mesmo seja referir aquilo que o cartaz se esqueceu de referir, a exposição na Geleria Quadrum é de um excelente artista e tem um nome: Bruno Pacheco. Deixei o melhor para o fim.

Ver para prazer do olhar

Diebenkorn, 1922-1993, USA
Soren Sejr, 1981 - , Dinamarca

Diebenkorn Ocean Park #128,  1984

Diebenkorn
Ocean Park #128,
1984

Diebenkorn Ocean Park #116,  1979

Diebenkorn
Ocean Park #116,
1979

Passaram 6 décadas entre o nascimento de um dos mais aclamados pintores expressionistas americanos, Richard Diebenkorn (1922-1993), e o ainda jovem e desconhecido pintor dinamarquês, Soren Sejr.

Diebenkorn conquistou um espaço nos livros e museus, na história da arte do século xx. Tem uma fundação: http://diebenkorn.org e cerca de 50 anos passados a pintar. Fases distintas, capítulos bem definidos numa linha de tempo. É um dos meus pintores preferidos do século XX.

Soren Sejr é um pintor do século XXI. Pouco sei. A linha de tempo é tão escassa como a informação. Por um mero acaso viajei até Aarhus, na Dinamarca, com travessia directa via Instagram. Tem um percurso com fios e ligações à pintura modernista.

Detive-me na geografia contida e linear das suas últimas obras. Lembrei-me do “meu velho amigo” Diebenkorn. O passado bem assente, a memória viva, os processos estruturados, a procura genuína, a pintura verdadeira e universalista, estende-se e propaga-se por continentes e gerações. Não morre, não se apaga.

Não se trata de passadismo ou revivalismo. Não tento comparar. Mas ambos os autores, nas suas distâncias, debatem-se com as questões de fundo que envolvem o processo criativo: os planos, o espaço, o jogo da cor e luz, o constante desafio de acrescentar algo e resolver o infinito, a procura da formula que conduza e responda à necessidade do equilíbrio.

Soren Sejr  “For Martha” 2018

Soren Sejr
“For Martha”
2018

Soren Sejr “D-Play”, 2018

Soren Sejr
“D-Play”,
2018