Manuel Tainha, Being yourSelfie

 
 

Recentemente convidaram-me para falar num debate sobre o seguinte tema: o futuro é natural. A minha reacção primária foi uma interrogação: ai é? Não consigo ter uma ideia clara e muito menos certezas sobre o que aí vem. Vejam bem, o Jeff Koons acabou de vender um coelho fake por 91 milhões de dólares e há 91 milhões de coelhos presos à espera de um tacho. Expliquem-me lá isto. É natural? 

Pois certo dia ouvi esta frase e ficou-me para a vida: quando não vivemos o que acreditamos, passamos a acreditar no que vivemos. O futuro é no fundo o resultado desta frase. O certo é que o planeta está cheio de gente e gente cheia de ideias e isso é sempre promissor. Por isso gosto de sondar os artistas e estar próximo das novas gerações. O que pensam e como vivem na relação com o presente e o futuro?

Fui ao atelier do Manuel. Gosto do nome Tainha, não é propriamente sexy mas é interessante. Despertou-me a curiosidade. Li o nome colado a uma imagem de um jovem com um chapéu de palha na cabeça. O enquadramento é original. O seu Instagram também. Depois vi umas notas soltas, trabalhos expostos aqui e ali, e soaram-me bem. E nestas matérias das artes gosto de seguir o instinto e perseguir o rasto. 

O Manuel Tainha tem 25 anos. Poucos. E de pintura quase nada. Mas tem ar de artista e não há fumo sem fogo. E por isso fiz o que eles todos fazem, mandei uma mensagem pelo Insta e... Bingo! Tem um avô arquitecto, um pai arquitecto e uma tia ligada às artes. Não bati na porta errada. Há uma matriz que nos persegue, forma-se quando somos crianças e nos obrigam a comer a papa nos jardins da Gulbenkian. Não nos entrega um certificado de qualidade, nem exclui todos os outros, mas vacina os que lá passam.  

Resolvi ir conhecer de perto a cena do Manuel. Esta geração não olha para o conta quilómetros, nem jogam com o amanhã, porque hoje há cerveja e um beat para os levar a parte alguma. Onde, não importa, não sabem, o onde tem muitas portas e um mundo que entra sem perguntar, o onde está ali, num sorriso e num encontro ocasional, numa imagem que recebem e os convoca para uma praia, seja a sua, a dele ou deles... não importa mesmo, desde que seja uma praia de areia doce e ar fresco, e eles respiram e inspiram, e quando inspiram retém aquilo, e depois levam e traduzem numa outra dança qualquer que não querem definir ou referenciar, ficam hoje por aqui, porque amanhã é um outro dia, uma outra história e o carro vai continuar a rolar. Importa mesmo é cada um curtir a sua cena.

O meu cérebro, como é evidente, tem outro formato, mas confesso que esta geração tem imenso charme e uma infinidade de m2. O futuro é natural? Não sei, mas é natural que haja um futuro paras as novas gerações. O tempo é a realidade mais enganadora, tem uma presunção que termina no segundo seguinte. Mas naquele segundo imutável, que pode durar anos, podemos porventura sentir o abraço da eternidade e a euforia dos Deuses. O segundo depois termina, morre, só que eles não sabem. E ainda bem. Vivem cada milésima como se fosse o última. 

O que eles já sabém é que para se saltar e inspirar o segundo seguinte é preciso agarrar uma boa dose de pragmatismo. Queres viajar e não tens dinheiro, vais trabalhar no café. Só depois partes. Foi assim. Depois de muitas bicas e minis o Manuel Tainha seguiu os conselhos de Matt Mullican e viajou para Hamburgo.

Viver ali deu-me uma visão de labor e da tradição do trabalho árduo. Obrigou-me a desinstalar, a fazer e experimentar sem estar refém de um saco de referências. Algo muito português. Na Alemanha senti maior liberdade. Não há desculpas, nem bloqueios, nem paternalismos. Há um ciclo de expansão do teu eu. Há uma competição saudável e uma outra escala de mundo e oportunidades. 

Há um sonho em curso que conjuga irreverência e a vontade de extravasar. Deixou o terceiro ano de Belas Artes pendurado, arrumou a mala e foi para Hamburgo, mas sabe que a cena dele tem os seus custos. Não importa, aprendeu a não se levar demasiado a sério. A rédea corre solta, tal como a vontade, tal como a vida. As cenas vão-se sucedendo sem uma ordem ou alinhamento, mas o trabalho de atelier, esse, tem um guião determinado por uma vontade firme.  

Quem sou eu para controlar, quando as coisas mais bonitas que me aconteceram e vi resultaram de acções não controladas. Nas Belas Artes... aquilo começou a estagnar e eu queria ir, expor com outros colegas, explorar e perceber onde estaria a minha identidade. E fui. Ao contrário da ideia dominante que temos dos alemães, eu senti que eles não se levam demasiado a sério. O trabalho sim, eles trabalham imenso, toda a gente trabalha e apresenta resultados. Foi o melhor que me aconteceu.

Agora em Lisboa. O atelier é um submundo de tábua corrida onde descansam dezenas de tecidos pintados e por pintar. Há ali um lado cinematográfico mas verdadeiro, aquele ar dos ateliers de artistas: objectos perdidos, pincéis que não usa, garrafas de líxivia com as quais pinta, copos manchados de chá, máquina de costura, tomadas e fios derramados no chão, grades encostadas nas paredes, telas, um computador desgastado e uma coluna de som a bombar. Por detrás estende-se o casario e uma vista sobre o Tejo, sempre presente, sempre disponível.  

Entretanto tudo isto continua mesmo em mudança. Ouvi dizer que o Ritz já tem um serviço de Take Away, querem mais provas?! E o grande trunfo das novas gerações é que comportam uma carga de informação universal que caberia em 5 gerações passadas. Quando lhe pergunto por referências a escala rebenta. A viagem vai de Vilhelm Hammershøi a Michael Majerus. Isto agrada-me. O Manuel Tainha não quer rebentar com a escala, quer apenas encontrar o seu caminho fora de uma escala ditada.

O meu trabalho é centrado em questões formais, mas tem um lado romântico. Aquilo que me move é uma energia que passa por múltiplas referências, inclusive as referências da escola clássica. Pode passar por Hans arp como pode bater no genérico do FiFa2003 ou libertar a energia dos jogadores de rugby. Sou eu, é o meu léxico. É evidente que o espectro intelectual da pintura foi construído na academia, até pela educação que recebi, mas depois, depois chega a minha vida e se estou a ouvir afrobeat enquanto pinto, o meu corpo, a minha mão, o meu gesto… aquele som faz ressonância em mim e isso pode ser intelectualizado depois, mas só depois. Num primeiro plano estou aberto à vida, acolho, gosto da surpresa. Na Alemanha disseram que o meu trabalho tinha um carácter feminino. E isso foi uma enorme surpresa.

O mundo pessoal de Manuel Tainha é objectivamente intenso, como o rugby que jogou durante 12 anos. Exige contacto e proximidade, uma batalha campal em modo regrado, porque há regras formais e alinhamento, uma ética com estética que é necessária cumprir. O processo é libertário e extravasa os cânones: usa lixívia, cose, perfura e constrói, até encontrar uma formalização que faça sentido. O resultado pode ser suave, mas a construção é violenta. Carrega a herança da arquitectura. Tem uma tendência natural para “objectualizar” a pintura. Todo um contexto que derruba fronteiras e multiplica as opções e escolhas. A pintura é hoje uma escala aberta que se solta das academias, não necessita obrigatoriamente dos pincéis. A pintura é uma entidade com vida própria, um meio com múltiplos caminhos, e o Manuel Tainha procura decididamente o seu.

Não adianta insistir ou procurar vislumbrar o que aí vem, o futuro é um espaço longínquo e imaterial.  Por ora a verdade reside na graciosidade ou “desgraciosidade” de gestos irrepetíveis. Há coragem aqui, escalas interessantes, a delicadeza do silêncio e a imperfeição que joga com uma organização “perfeita”. É um trabalho que exige a presença e o toque do nosso olhar. Permite-se assumir desvios formais, o que se revela encantador. Arrisca, perfilha o incorrecto, porque o correcto é uma mera formulação académica. O setup é marcado por uma coreografia vibrante. Há espaço para a surpresa. O feminino sobrevoa um campo de rugby. E sobre o futuro estamos conversados, ele vive no presente. 

Manuel Tainha, Being yourSelfie

 
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Recentemente convidaram-me para falar num debate sobre o seguinte tema: o futuro é natural. A minha reacção primária foi uma interrogação: ai é? Não consigo ter uma ideia clara e muito menos certezas sobre o que aí vem. Vejam bem, o Jeff Koons acabou de vender um coelho fake por 91 milhões de dólares e há 91 milhões de coelhos presos à espera de um tacho. Expliquem-me lá isto. É natural? 

Pois certo dia ouvi esta frase e ficou-me para a vida: quando não vivemos o que acreditamos, passamos a acreditar no que vivemos. O futuro é no fundo o resultado desta frase. O certo é que o planeta está cheio de gente e gente cheia de ideias e isso é sempre promissor. Por isso gosto de sondar os artistas e estar próximo das novas gerações. O que pensam e como vivem na relação com o presente e o futuro?

Fui ao atelier do Manuel. Gosto do nome Tainha, não é propriamente sexy mas é interessante. Despertou-me a curiosidade. Li o nome colado a uma imagem de um jovem com um chapéu de palha na cabeça. O enquadramento é original. O seu Instagram também. Depois vi umas notas soltas, trabalhos expostos aqui e ali, e soaram-me bem. E nestas matérias das artes gosto de seguir o instinto e perseguir o rasto. 

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O Manuel Tainha tem 25 anos. Poucos. E de pintura quase nada. Mas tem ar de artista e não há fumo sem fogo. E por isso fiz o que eles todos fazem, mandei uma mensagem pelo Insta e... Bingo! Tem um avô arquitecto, um pai arquitecto e uma tia ligada às artes. Não bati na porta errada. Há uma matriz que nos persegue, forma-se quando somos crianças e nos obrigam a comer a papa nos jardins da Gulbenkian. Não nos entrega um certificado de qualidade, nem exclui todos os outros, mas vacina os que lá passam.  

Resolvi ir conhecer de perto a cena do Manuel. Esta geração não olha para o conta quilómetros, nem jogam com o amanhã, porque hoje há cerveja e um beat para os levar a parte alguma. Onde, não importa, não sabem, o onde tem muitas portas e um mundo que entra sem perguntar, o onde está ali, num sorriso e num encontro ocasional, numa imagem que recebem e os convoca para uma praia, seja a sua, a dele ou deles... não importa mesmo, desde que seja uma praia de areia doce e ar fresco, e eles respiram e inspiram, e quando inspiram retém aquilo, e depois levam e traduzem numa outra dança qualquer que não querem definir ou referenciar, ficam hoje por aqui, porque amanhã é um outro dia, uma outra história e o carro vai continuar a rolar. Importa mesmo é cada um curtir a sua cena.

O meu cérebro, como é evidente, tem outro formato, mas confesso que esta geração tem imenso charme e uma infinidade de m2. O futuro é natural? Não sei, mas é natural que haja um futuro paras as novas gerações. O tempo é a realidade mais enganadora, tem uma presunção que termina no segundo seguinte. Mas naquele segundo imutável, que pode durar anos, podemos porventura sentir o abraço da eternidade e a euforia dos Deuses. O segundo depois termina, morre, só que eles não sabem. E ainda bem. Vivem cada milésima como se fosse o última. 

WhatsApp Image 2019-05-21 at 12.42.41.jpeg

O que eles já sabém é que para se saltar e inspirar o segundo seguinte é preciso agarrar uma boa dose de pragmatismo. Queres viajar e não tens dinheiro, vais trabalhar no café. Só depois partes. Foi assim. Depois de muitas bicas e minis o Manuel Tainha seguiu os conselhos de Matt Mullican e viajou para Hamburgo.

Viver ali deu-me uma visão de labor e da tradição do trabalho árduo. Obrigou-me a desinstalar, a fazer e experimentar sem estar refém de um saco de referências. Algo muito português. Na Alemanha senti maior liberdade. Não há desculpas, nem bloqueios, nem paternalismos. Há um ciclo de expansão do teu eu. Há uma competição saudável e uma outra escala de mundo e oportunidades. 

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Há um sonho em curso que conjuga irreverência e a vontade de extravasar. Deixou o terceiro ano de Belas Artes pendurado, arrumou a mala e foi para Hamburgo, mas sabe que a cena dele tem os seus custos. Não importa, aprendeu a não se levar demasiado a sério. A rédea corre solta, tal como a vontade, tal como a vida. As cenas vão-se sucedendo sem uma ordem ou alinhamento, mas o trabalho de atelier, esse, tem um guião determinado por uma vontade firme.  

Quem sou eu para controlar, quando as coisas mais bonitas que me aconteceram e vi resultaram de acções não controladas. Nas Belas Artes... aquilo começou a estagnar e eu queria ir, expor com outros colegas, explorar e perceber onde estaria a minha identidade. E fui. Ao contrário da ideia dominante que temos dos alemães, eu senti que eles não se levam demasiado a sério. O trabalho sim, eles trabalham imenso, toda a gente trabalha e apresenta resultados. Foi o melhor que me aconteceu.

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Agora em Lisboa. O atelier é um submundo de tábua corrida onde descansam dezenas de tecidos pintados e por pintar. Há ali um lado cinematográfico mas verdadeiro, aquele ar dos ateliers de artistas: objectos perdidos, pincéis que não usa, garrafas de líxivia com as quais pinta, copos manchados de chá, máquina de costura, tomadas e fios derramados no chão, grades encostadas nas paredes, telas, um computador desgastado e uma coluna de som a bombar. Por detrás estende-se o casario e uma vista sobre o Tejo, sempre presente, sempre disponível.  

Entretanto tudo isto continua mesmo em mudança. Ouvi dizer que o Ritz já tem um serviço de Take Away, querem mais provas?! E o grande trunfo das novas gerações é que comportam uma carga de informação universal que caberia em 5 gerações passadas. Quando lhe pergunto por referências a escala rebenta. A viagem vai de Vilhelm Hammershøi a Michael Majerus. Isto agrada-me. O Manuel Tainha não quer rebentar com a escala, quer apenas encontrar o seu caminho fora de uma escala ditada.

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O meu trabalho é centrado em questões formais, mas tem um lado romântico. Aquilo que me move é uma energia que passa por múltiplas referências, inclusive as referências da escola clássica. Pode passar por Hans arp como pode bater no genérico do FiFa2003 ou libertar a energia dos jogadores de rugby. Sou eu, é o meu léxico. É evidente que o espectro intelectual da pintura foi construído na academia, até pela educação que recebi, mas depois, depois chega a minha vida e se estou a ouvir afrobeat enquanto pinto, o meu corpo, a minha mão, o meu gesto… aquele som faz ressonância em mim e isso pode ser intelectualizado depois, mas só depois. Num primeiro plano estou aberto à vida, acolho, gosto da surpresa. Na Alemanha disseram que o meu trabalho tinha um carácter feminino. E isso foi uma enorme surpresa.

O mundo pessoal de Manuel Tainha é objectivamente intenso, como o rugby que jogou durante 12 anos. Exige contacto e proximidade, uma batalha campal em modo regrado, porque há regras formais e alinhamento, uma ética com estética que é necessária cumprir. O processo é libertário e extravasa os cânones: usa lixívia, cose, perfura e constrói, até encontrar uma formalização que faça sentido. O resultado pode ser suave, mas a construção é violenta. Carrega a herança da arquitectura. Tem uma tendência natural para “objectualizar” a pintura. Todo um contexto que derruba fronteiras e multiplica as opções e escolhas. A pintura é hoje uma escala aberta que se solta das academias, não necessita obrigatoriamente dos pincéis. A pintura é uma entidade com vida própria, um meio com múltiplos caminhos, e o Manuel Tainha procura decididamente o seu.

Não adianta insistir ou procurar vislumbrar o que aí vem, o futuro é um espaço longínquo e imaterial.  Por ora a verdade reside na graciosidade ou “desgraciosidade” de gestos irrepetíveis. Há coragem aqui, escalas interessantes, a delicadeza do silêncio e a imperfeição que joga com uma organização “perfeita”. É um trabalho que exige a presença e o toque do nosso olhar. Permite-se assumir desvios formais, o que se revela encantador. Arrisca, perfilha o incorrecto, porque o correcto é uma mera formulação académica. O setup é marcado por uma coreografia vibrante. Há espaço para a surpresa. O feminino sobrevoa um campo de rugby. E sobre o futuro estamos conversados, ele vive no presente.