Pedro Batista, sobre a luz da pintura

 
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“… nas sociedades “supertecnológicas” quem consegue passar três ou quatro horas sozinho, sem estar ligado à Internet, está a introduzir ou a manter séculos passados no século XXI… Hoje, ler e escrever são quase processos de resistência, revolucionários. Não estar ligado à Internet, estar sozinho, implica ultrapassar uma quantidade de obstáculos. Não sendo a escrita um processo espiritual é um processo de abdicação. O contacto com a Internet é o mais fácil.”

Gonçalo M. Tavares, in entrevista ao semanário Expresso

Prelúdio. 
Sucede-me com cada vez maior frequência conhecer pessoas que manifestam abertamente o seu desejo:“vou assumir a minha vocação de artista”. Acho óptimo, até porque as máquinas vão acabar por retirar-nos dos trabalhos. Alguns querem ser pintores. Pegar em tintas e ficar ali, dia e noite à volta de uma ciência inexata. Esta tendência deveria ser diagnosticada precocemente. E no caso de se confirmar deverá ser ministrada uma prescrição bem definida e exemplar. Aceitar este destino é um passo que exige perspectiva e clarividência. Recordo-me que quando eu era miúdo os meus pais, de forma contínua e insistente, ensinaram-me a não aceitar nada sem saber o que me estavam a oferecer. No mínimo desconfiar, estar atento ao detalhe, avaliar com ponderação e franzir a sobrancelha antes de estender a mão. Ficou-me para a vida. Sou desconfiado. Os pais são um carimbo de memórias. Marcam-nos. E usam uma tinta que depois não sai. Esfrega-se, esfrega-se, esfrega-se, mas a impressão fica ali, debaixo da pele. É desta tinta que falo. Há um gene muito singular que determina a forma do desejo. É preciso conhecê-lo. A pintura é algo para se levar muito a sério.

Coragem. 
Esta manhã, ali pelas 08h00 à porta do ginásio, encontrei um amigo que decidiu relatar-me o sacrifício que acabara de viver ao sair da cama: “mas explica-me lá, porque é que tudo custa tanto, não podia a vida ser mais fácil? Temos mesmo de passar por um sacrifício para atingir algo válido…”. Rimos juntos, demos uma pancada no ombro um do outro, virámos as costas e fomos fazer flexões no meio de uma pequena multidão. É assim. O enigma que vivemos, este de estar vivo e viver estados de alma, não tem solução aparente. Os criadores sabem-no como ninguém. E ninguém neste planeta vive assim tão intensamente consigo próprio, dia a dia, pesquisando nas profundezas mais sombrias, vasculhando, vencendo com coragem o medo do escuro e a insegurança da mão, quando esta se recusa a obedecer e não corresponde uma ordem dada, quando o cérebro diz sim, segue o caminho, e os passos ficam tão aquém do que se imaginou.

Contexto.
O Pedro Batista é um pintor que acompanho desde 2012. Temos afinidades e amizades comuns mas nunca nos misturamos. Estou uma geração acima. O meu sangue corre mais espesso e lento. Isso permitiu-me sempre um olhar independente e crítico. Ser um pintor na sua geração é um desafio maior de sobrevivência, tanto de espírito como financeiro. Mas olhando de fora o mood geral é fun&fresh. A geração Erasmus e as companhias áreas low cost criaram as pontes deste novo melting pot, onde a máxima “vive e deixa viver” é acompanhada por uma avalanche de hubs criativos que vieram destituir dogmas e revolucionaram a própria industria criativa. É uma geração aberta e imparável, uma teia de redes e trocas que criam energia e novos valores. O Pedro Batista sabe surfar nesta onda que se desmultiplica em experiências de vida, entre o cool boy montado no seu skate e o artista que precisa de viver agarrado à sua raiz. Ao longo destes anos visitei e conheci uns quatro ou cinco ateliers onde se instalou e desinstalou. Lugares de passagem, lugares de experiência, lugares comuns aos da sua geração, mas ponto fulcral, onde exerceu o seu manifesto de pintor. 

Arena.
Esta evidente dualidade entre a ligeireza dos dias e a profundidade dos espíritos, tão vincada e difícil de conjugar, gera a matéria que despertou o meu interesse na obra do Pedro Batista. Enquanto pintor faz parte de uma geração que vive em contra ciclo. Todos eles precisam de silêncio, interioridade, tempo, precisam do toque, da verdade e dos olhares que sabem pousar com delicadeza... precisam de tudo isto e muito daquilo de que todos fugimos porque nos dá medo. E isto passa-se dentro. Lá fora, onde se vive, o filme muda radicalmente de cenário. Há um enorme campo de batalha disfarçado por confettis e lantejoulas. Um grau abaixo o terreno está repleto de oportunidades e peões armados. Há facções, intrigas, géneros e lutas que não se podem negar. A competição é feroz. O idealismo também. Um pintor sabe que há fronteiras que só se conseguem ultrapassar com a persistência e o tempo. Algumas só com ajudas. Mas a pintura continua a ser pintura. Perceber e conviver nesta dualidade, deixar-se ficar sem ser vencido, é o jogo da sua vida. 

Sobre a pintura de Pedro Batista.
Gosto imenso de olhar e gostar. Por vezes faz-me bem não ter de pensar ou apreender mensagens subliminares que me atiram para um conceito longínquo. Gosto de fruir. Gosto mesmo desta ideia perdida da fruição. Sabe-me bem ficar ali com aqueles traços e manchas que formam uma composição interessante. Sentir, mais do que perceber. Receber, mais do que pedir. Gosto de narrativas pintadas que nos deixam atentos. Aprecio enigmas que nos ligam a estórias não reveladas. E gosto da surpresa, de entrar pela criatividade alheia e de sentir o pulso da matéria. 
Faço vivas à old school, onde paradoxalmente inscreveria a pintura do Pedro Batista. Não foge da tela, não a nega. Ela é matéria e fórmula sofisticada de exprimir em frames o seu mundo, o seu statment. Não tem um percurso clássico mas é um pintor de atelier. Pinta a partir de uma narrativa interior, num exercício que se situa entre o desejo e uma necessidade. Não há ali espaço para a erudição ou aturadas proclamações filosóficas. Tão pouco a defesa de causas, demandas ou circunstâncias políticas e sociais. O conceito é simples e curto: pintar. A arena é a sua vida e o atelier, onde faz o que gosta. Foca-se sobretudo nas pessoas, num registo que transporta quase sempre uma carga psicológica ou teatral. Explora habitats diversos, recorrendo à cor, muitas vezes intensa e impactante. A “sua cena” é o momento que lhe dita e ele escreve. A pintura é um playground repleto de experiências e visões do quotidiano: personagens e estórias que recolhe das memórias ou naves espaciais que vagueiam na imaginação interplanetária. Falamos de matéria infinita: imagens cinematográficas, jogos psicológicos, sonhos, teias de memórias partilhadas, dinossauros ou objectos de culto. Estamos longe de uma visão clássica ou de uma tentativa de aproximação ao realismo. As vezes que o visitei e o vi a pintar, fiquei com a sensação de agarrar a pintura como um ofício, numa visão clássica do acto de pintar. Curiosamente esta formulação, aparentemente passadista, vem sendo reinventada numa outra escala, neste outro tempo, com toda uma nova fonte de desafios e mundos.

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