Muito antes de levantar olhares e questões sobre as artes plásticas, pergunto-me o que realmente me interessa e me faz feliz. Não tenho receita, nem resposta pronta. Mas sei, sinto e penso, que estamos a entrar num ciclo de movimentos extremistas. E curiosamente cada um deles existe e define-se sempre como resposta equilibrada a um alvo, esse sim, extremo. Parece não existir a percepção colectiva de que tudo isto não nos vai fazer sorrir e muito menos salvar.
O campo das artes é reflexo e projecção do momento e das correntezas que se assomam. Recebe e cria. Cria e projecta. Transforma e dá. Em alguns momentos históricos lidera o pensamento. Mas muitas vezes, como agora sucede e ao contrário do que tentam e querem fazer passar, é arrastado e é arrastão de um corporativismo endémico, torna-se seguidista: dos conceitos de poder, dos conceitos do mercado e até na apropriação de uma imagética que não é mais do que uma cópia sem alma do passado, que eles desprezam mas revisitam, prescrevem e vendem transvestida.
Consegue-se fazer isto tudo, sim, com uma ausência impressionante de autocrítica. Por vezes pior, com uma consciência crítica mas tão cerrada e defensiva que esmaga toda a pluralidade que pudesse coexistir. O tempo de todas as liberdades é o tempo de todos os despotismos. Hoje debatemo-nos com um grave problema de escassez num mundo a transbordar de excessos: escassez de simplicidade e de contemplação, escassez de tempo e individualidade, escassez de eternidade. Procura-se muito, deseja-se mais, compra-se tudo. E tudo e tanto sabe-nos a demais.
E por tudo isto e por sorte voltei recentemente às obras de William Scott (1912-1989 - williamscott.org) em casa do meu amigo Pedro Chorão. E chamar-lhe amigo é a maior prova da relatividade: como tudo muda e permanece ao mesmo tempo. O Chorão andou comigo ao colo. Hoje é um amigo patriarca que trago sempre perto da vista. Um dos maiores pintores vivos. O seu olhar azul profundo tem a mesma densidade do mar, de quem leu muito, viu muito. Continua a ler e a ver, pintura e mais pintura e mais pintura. E William Scott (WS) faz parte do núcleo de autores que admiramos. As suas representações não têm nenhuma obsessão que não seja a de pintar, ponto. E isso agrada-nos a ambos. WS não pretende representar frigideiras ou artefactos de cozinha. As formas e objectos são apenas motivo para desenvolver e mostrar pintura, a sua pintura. Devolve-nos simplicidade. Retira os excessos. Conduz o olhar ao silêncio profundo e ali, na solidão, com meia dúzia de notas, arrebata. É apenas isto. O que resta é apenas esta densidade de algo maior e universal. Todas as muitas e possíveis explicações serão porventura excessos face à essência e ao resultado do seu gesto.
Este mundo não é bom para velhos. Talvez também por isso o nosso mundo esteja a morrer. As pessoas duram mais mas nascem menos. Antes morria-se uma vez e ponto. Hoje fartamo-nos de morrer e renascer muitíssimas vezes em vida. Uma loucura, um desgaste. E mesmo renascendo em vida, curiosamente vamos perdendo a crença e renegando o espiritual. Morremos e não damos conta. Renascemos e não damos conta. É um faz de conta em contínuo. É um estar agridoce de crianças obesas, viciadas em açúcar, sempre sedentas, sempre ávidas e insaciáveis.
Nas artes, no patamar supremo das artes, na cúpula, não existe desde há muito um lugar central para a espiritualidade. O belo é pobre e está gasto. Há demasiadas clivagens, guerras, poderes e algoritmos, não esquecendo nunca a importância da aritmética. Nas artes o conceito surgiu como servo generoso, mas hoje tornou-se senhor, autoritário e dominador.
Há muito que o bater de asas de uma simples borboleta provocou um tufão do outro lado do mundo. Nem demos conta. Podemos tudo, só não devemos esquecer nunca que a arte integra os árduos caminhos da eterna (enquanto dura) procura da felicidade. Sem elas perdemos-nos todos.