Mónica Mindelis, Caos Calmo

“O ser que sobe vê apagarem-se os contornos do abismo”

A voz é suave, o tom pausado e tropical. O corpo franzino. O olhar, ligeiramente oriental. Expressivo, tal como o discurso. Sorriso fácil, audível e rasgado. Silênciosa e recolhida no acto de pintar. Traço expressivo. 

Mas quem é esta pintora, relativamente (des)conhecida, que pinta a partir de um exercício interior, diário e sistemático, que se inspira em Gaston Bachelard e segue para a tela levando e traduzindo no gesto, ora rasgado, ora dócil, a expressão da sua vida e do respirar e do sentir mais profundo?  

Quem é ela, que passados tanto anos de trabalho árduo e solitário de atelier solta de pronto um sorriso aberto:  “... sabe, eu acho que a minha pintura causa estranhamento. São poucas as pessoas que olham e gostam de imediato, mas isso é um elogio para mim... a revelação e o encantamento é posterior, exige uma relação, exige tempo... se fosse o contrário perdia todo o valor... isto para mim valida a universalidade interior que é comum ao ser humano.”

Vamos lá atrás.

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2011
Estávamos em 2011. Ia abrir uma galeria, o que aliás fazia todo o sentido. Basta recordar que vivíamos umas das maiores crises financeiras e o dinheiro que outrora corria como um rio, evaporou, ou melhor, sumiu. Precisava de montar um projecto e encontrar artistas plásticos que pudessem ajudar-me a formar um grupo de propostas sólidas e entre elas deviam coexistir novos autores. Fui afoito face ao perigo, à derrocada geral e ao convite lançado por dois amigos. Avancei. Para aumentar o grau da aventura, tinha passado os últimos cinco anos longe da capital e do selecto meio das artes e do meio que anda no meio do meio das artes. Foi neste contexto de um imenso salto no deconhecido que conheci a jovem Mónica Mindelis. 

2010
Para que conste. Em 2010 a minha vida era outra, oscialava entre um sargo grelhado e umas viagens de jipe em terreno acidentado. Trabalhava na costa alentejana. Recebia e guiava turistas, geria uma pequena empresa de alojamento local e turismo aventura. Ao fim da tarde podia seguir para o mar, descer umas ondas e de seguida, ao som do vento da noite, parar sem aviso à porta de um amigo: “vens jantar?”. Abria-se uma garrafa de vinho. Lá fora os pássaros apitavam aqui e ali, no ar um ligeiro aroma a esteva, e por cima o céu de um negro profundo e luminoso, repleto de coisas cintilantes e estrelas desconhecidas. Era simples. Bebia-se em silêncio. Comia-se devagar, falava-se se havia que falar, se não, era um silêncio acompanhado. Acabou-se quandos os tais dois bons amigos resolveram telefonar-me: “vens abrir uma galeria de arte em Lisboa”. Fui!  

2011, o encontro
Mudei-me e tudo mudou: o cenário e o ritmo, o contexto e as personagens. Vinha oxigenado. O campo dá-nos um ar diferente, entrega um horizonte que flui de manhã ao anoitecer. É escasso, pouco erudito, aparentemente solitário, mas intensamente revelador da essência maternal da vida.  

 Lisboa buzinava numa pressa que tinha guardada na memória. O encontro com os artistas, a criação de um calendário de projectos, as obras na galeria, a comunicação ao mundo, o catálogo, a base de dados, o convite... era preciso despoletar tudo e tudo já. Mas no primeiro plano interessavam-me os autores.

Não me lembro como lá cheguei, mas fui parar a umas catacumbas na Sociedade Nacional de Belas Artes. A Mónica Mindelis esperava-me e eu às escuras. A sala era enorme e vazia. Paredes brancas e nisto vejo-a a desenrolar uns rolos enormes de tela e papel, pinturas que a ultrapassavam em altura. Assisti áquele bailado na expectativa e com o receio de dizer: não. 

Surgiram uns traços expressionistas, vigorosos, que formavam uma teia intensa e caótica. Transmitiam uma energia própria. Impressionou-me, porque no caos pode subsistir a luz e uma certa escala de harmonia. Apresentou-me uns cinco ou seis trabalhos, todos eles com as notas exclusivas do preto e do branco. Falavam entre si. Aquilo lembrou-me “old school” e em bom. Disse sim.

 
 

Caos Calmo
Foi o começo. Desenvolvemos vários projectos em conjunto. A pintura, como qualquer processo artístico, necessita de um bem escasso, o tempo, e a Mónica Mindelis é generosa e paciente com ele. Percebi um pouco mais tarde que pintar não é apenas um acto de desejo ou uma daquelas vontades que nos dão, tão pouco um processo religioso ou experimentalista. É antes uma missiva espiritual de mergulho interior, um exercício permanente, onde a pintura tem o papel principal:

“O meu trabalho será sempre uma procura até ao último suspiro. Tem um lado muito intuitivo, sim, e isso não se explica, é a parte mais livre. Quando me deixo ser, quando estou ali por inteiro... é um momento intenso... eu não consigo dissociar o trabalho da minha vida, do momento que vivo. Quando estava grávida era impossível não ver a ali a maternidade... até os títulos das obras gritavam: “todo o ninho está condenado ao abandono”... os sentimentos fortes estão sempre lá... mas acho que isso é óbvio para todos... embora haja muitos autores que claramente dissociam o interior do seu trabalho. Não é o o meu caso.”

 Pois não!

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Depois da escrita rasgada, do preto e do branco, chegou a cor, “... e uma diferença fundamental: a intencionalidade. Na primeira fase da minha pintura eu partia do gesto e avançava por ali fora, sem pensar. O gesto vinha e só depois a composição. Agora a minha pintura é mais intencional, perdi o medo das formas”.

E passados oitos anos deste caos calmo é possível formular e delimitar os vários capítulos, “o meu trabalho é uma continuidade, são etapas da vida e da sua dualidade, dos cuidados e dos sonhos a que estamos sujeitos.”

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“Se no céu as imagens são pobres, os movimentos são livres” 


Gosta dos contrastes mas interessa-se e foca-se na procura do equlíbrio. Reina sempre a dualidade entre a explosão e a ordem: traços finos e suaves, manchas densas e com volume... surge a colagem, fina e regular, e ao lado um traço rude e vincado do bastão de óleo. “... eu procuro essa massa, como ao mesmo tempo preciso da suavidade do lápis... gosto de trabalhar o imperfeito, sentir na pele a beleza do imperfeito e fazer transparecer essas camadas de vida...”

E não nos entrega nada de mão beijada, teremos sempre de atravessar uma tempestade, sobreviver ao tumulto visceral da composição, aos contrastes, à intensidade narrativa e às explosões de cor, aos cortes e recortes vincados… mas se persistirmos e nos retivermos para além do imediato, se aprendermos a observar com atenção as nuances de uma caligrafia autónoma, revela-se um mundo desconhecido, uma linguagem vibrante e original.

A delicadeza explosiva ou a explosão delicada podem coexistir, ponto. Como escreveu Pedro Chorão: “O segredo é esta pintura levar o espectador a ficar sem saber bem o que dizer… É isto que é muito importante a pintura ter: o inexplicável, o mistério eterno, que será o que lhe irá dar a eterna vida”.

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Variáveis menos visíveis que eu aprecio:

Escreve enquanto pinta. Toma regularmente notas num caderno onde reúne textos e citações que se convertem em pistas e posteriormente ganham formas. Pensa sobre o acto de pintar. Raro.

Gosta de sonhar e consegue voar. É muito saudável esta capacidade de nos libertarmos dos pesadelos e ascender aos céus. Fala muito do filósofo Gaston Bachelard, uma companhia imprescindível: “… ele escreveu sobre a poética do sonho. A descrição de um sonho, quando as pessoas estão a voar... e lembro-me de ter sentido este sentimento maravilhoso de liberdade. Nenhum inimigo era capaz de me alcançar. Era a salvação...”.

Pratica a interioridade. O que nos oferece vai além do empirismo, dos sentidos e da razão. São formas não tangíveis que apontam a uma evocação de interioridade, a uma experiência sensível. Vive o que pinta, pinta o que vive.

Aprecia o perfeito inacabado: “o meu trabalho nunca vai estar pronto... é verde maduro... e isso conforta-me, porque significa que nunca vai ter fim...”

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Nota à parte
Enquanto escrevia este texto questionei-me por diversas vezes: porque tendo a alongar-me em considerações autobiográficas e afins? Uma explicação possível: escrever sobre artes plásticas pode ser tão complexo e fastidioso quanto ler. E todos nós já sentimos o martírio de passar os olhos por um texto que nos faz sentir os seres mais atrasados à face da Terra. Aquilo não apetece. E aquilo serve para explicar “a coisa” que está lá dentro, exposta, que não é para explicar, dizem, mas pelo sim pelo não, aquilo dá algum corpo e formalidade, no mínimo cria a dúvida e a dúvida penetra nas nossas certezas e torna-as incertas, inseguras face “à coisa” e deixa-nos ali pendurados e assim, sem se explicar, deixa-se explicado que algo filosoficamente inteligente está para lá de uma percepção primária, porventura a nossa. 

Não apetece. Não me apetece. E por isso, depois de ter tentado sem sucesso assimilar e fazer copy/paste de discursos e frases eruditas e notavelmente inteligentes, para tentar criar uma linha própria, rapidamente percebi que nem com mais estudos e teses de doutoramente chegaria lá, e também por isso o caminho apresentou-se-me simples, optei por back to the basics, no fundo por apresentar algumas pessoas que têm algo para nos revelar e surpreender sem termos de mergulhar num qualquer abismo filosófico ou conceptual. De forma muito simples, retirar a prosa daquela área do quadrado fechado onde por norma se expressa a vertente erudita, culta e por vezes altiva do meio, abraçando aqui uma forma de paganismo e sujeitando-me, como é evidente, a algum tipo de inquisição. 

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