Vivemos num tempo engenhoso. A geração dos anos 70 percebe muito bem do que falo se lhes falo e relembro a série de ficção científica que passava na televisão, o célebre “Espaço 1999”. Confesso que anos mais tarde senti-me profundamente enganado, What the f…. de pré história futurista foi essa. Já era. Gone with the days, vanished, e isto continua sem naves espaciais. O planeta onde habitamos é o mesmo, mas reconheçamos humildemente que a vida mudou, e com ela a humanidade, que viaja com o corpo na Terra mas numa vertigem que nos atira para uma odisseia no espaço, digital.
Tanto e tanto de tudo. E tudo tão rápido. E tantas pessoas tão certas. E tudo se esvai. As certezas rebentam. Ontem passou. Amanhã é um mero desejo que se encontra por acontecer. A nossa liberdade, o intelecto, perdem chão e autonomia. A religião, a poesia, a filosofia e as artes deixaram de nos reger. Não se extinguiram mas vivem subordinadas ao materialismo absoluto.
Surgiu entretanto um novo rei: o algoritmo, o ícone da modernidade. Nele e só nele podemos confiar. Dirige-nos, comanda, orienta as vidas e o ritmo com a precisão absoluta de um GPS. Esta é uma nova ordem, plena de promessas, abertura e oportunidades, mas perdeu-se a idade da inocência. Já não vivemos no meio de coisas, vivemos sujeitos e submissos às coisas. Somos literalmente esmagados por o peso de um gentil e delicado elefante.
No campo das artes, esse prado fértil, por vezes pueril, por vezes maquiavélico, onde os seres humanos se despojam e procuram alcançar a redenção, alguns atingem o céu, outros o inferno e as novas correntes, essas, parecem pender para atingir o algoritmo. Apesar de tudo ainda se julga que a arte e o mundo jamais serão territórios de certezas absolutas. Veremos. O terreno é fértil mas movediço e manipulável.
A arte é em parte refém da liberdade que advoga para si. Porque uma coisa é assumirmos o nosso quinhão libertário, e uma outra é permitir e assumir o mesmo tom de liberdade para o outro, para aquele que tem uma visão de mundo e uma expressão diferente.
A relação com a diversidade é uma das mais ilustres competências dos seres humanos. Olhamos, gostamos, abraçamos e amamos coisas, atributos e pessoas diferentes. E nenhuma linguagem humana é perfeita, apenas o algoritmo, do qual estamos reféns. Todas as outras são instrumento e oportunidade de transformar o caos num mundo de objectos e representações, conferindo-lhes um padrão e uma identidade que nos protege. E por maior que seja a sua plasticidade, uma linguagem aproxima-nos mas jamais traduz o infinito, o imaterial e a essência que tanto ambicionamos alcançar. Não há por isso teorias ou práticas artísticas capazes de abarcar uma escala maior do que o próprio ser. A vaidade é infundada.
Um outro perigo ronda e espreita: a auto preservação da tribo. A condição humana vive debaixo da guilhotina. Sabemos que os movimentos de grupo são uma resposta de caminho mas também de defesa e auto preservação. Vamos atrás, porque isso significa viver. E quando não vivemos a partir da génese do que acreditamos, passamos a acreditar naquilo que vivemos. Acreditamos na liberdade mas vivemos o materialismo. E neste nosso tempo da mais absoluta pluralidade, tão desalmadamente arrumado, as facções extremam-se e antagonizam-se. Na ausência de uma liberdade inspiradora, gratuita, feita de sonho e luta em prol de uma qualquer utopia, a arte, tanto quanto a humanidade, vai-se moldando aos ditames do materialismo. Ninguém está livre.
Olhem à volta. O nosso mundo está velho e obeso. Inchado de tanto ter ou de tanto procurar ter, de tanto ser ou procurar ser. A patine maquilhada e o glamour do movimento e das luzes, não retira um espectro de fundo, a sensação que nada mais há para alcançar.
E nas artes, os movimentos e os gritos de revolta ganham forma. A tribo da vanguarda, tanto hoje como no passado, atira-se para o abismo, procura desenfreadamente alternativas ao vazio. Reúne, conspira e por fim formula: o belo é vulgar, o modelo gasto, a sensação de vazio intensa, a única proposta de saída é a desmaterialização da arte e dos seus processos.
É uma fuga para a frente, um tsunami colectivo que arrasta tudo e todos à sua passagem. Separa-se a arte da estética. A matéria perde valor em função da ideia. Há um desejo de ruptura. Há uma desconfiança generalizada sobre todos os modelos, o modelo que se impõe é a ausência de modelo, bem como de categorias. Há um global desprezo pelas competências técnicas, assumindo-se o gesto inapto, a incorrecção. Importa apenas ser interessante, ainda que o interesse seja só meu ou só da minha tribo.
Nada disto é novo. Nenhum processo artístico é à partida bom ou mau. Nenhuma avaliação deve ser ligeira ou descontextualizada. Os movimentos são resposta a algo que carece de resposta. Acontece que não há apenas uma resposta aos dilemas humanos. Apesar dos ciclos das vanguardas iremos continuar a ter experiências e a produzir juízos sobre obras de arte, sobre a sua estética, sobre o seu valor emotivo e referencial, histórico e geracional.
Um movimento de ruptura não se pode tornar num movimento padrão, perde o desígnio, deixa de ser grito e passa a ser voz. A linha de segurança destes movimentos é muito fina: será possível um anti modelo transformar-se no modelo? A irreverência de tão mastigada converter-se numa profunda banalidade? Uma fórmula disruptiva virar um chavão? Um apelo libertário desprezar a liberdade? Poderão alguns egos circunscrever a verdade da arte? Poderá falar-se da ausência da estética apresentando e defendendo uma estética? A ruptura é porventura um rasgão que permite acolher uma outra margem, mas a ruptura também pode ser fractura inconsequente. Procure-se ler os sinais dos tempos.
“…os críticos são sempre, e inevitavelmente, cúmplices das estratégias comerciais de promoção dos autores a quem dedicam a sua atenção, isto independentemente do conteúdo dos comentários que sobre eles possam produzir. Neste terreno, portanto, todo o moralismo é hipocrisia ou ignorância. Tudo o que os críticos podem fazer é ter plena consciência da perspectiva estratégica e do grau de eficácia do seu discurso para se poderem assegurar de que os efeitos sociais da sua intervenção correspondem de facto às suas opções e posições culturais de base.”
In Sistema da Arte Contemporânea, Alexandre Melo